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Eustáquio e o tempo

Anúncio fúnebre faz renascer construtor de castelos

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Linda Cesario

Há momentos na infância que nos marcam como ferro em brasa no couro de gado. Cicatrizes tão profundas, que nem um fiozinho de cabelo se atreve a nascer sobre tamanha devastação. Não que esses instantes sejam de todo desagradáveis, já que também há aqueles que nos transportam para o passado e nos enchem de sorrisos bobos nos lábios, mesmo que já envelhecidos depois de tantas primaveras.

Eustáquio, no alto dos seus mais de 70, apesar de sempre ter se atrasado para o trabalho, agora, já aposentado, era pontual no seu encontro matinal com a praia, logo ali à frente, não mais que trezentos passos da sua quitinete em Copacabana. Atravessava quatro ruas e, antes que pisasse na areia, retirava o chinelo.

O primeiro contato dos pés com aqueles infinitos grãos era uma das sensações mais gostosas que esse tempo lhe trazia. Não que o velho tivesse uma vida ruim. Pelo contrário. Era um fanfarrão, desses capazes de passar o dia inteiro em confraternizações com amigos ou mesmo simples conhecidos do último verão.

Já sem idade para levar um baldinho e uma pá para fazer castelos na areia, ele armou a cadeira e abriu o jornal. Entre uma notícia e outra, dava uma olhada no público ao redor. Alguns corajosos encaravam aquela água gelada, enquanto outros tentavam manter a bola no ar em eternos altinhos. Obviamente que velhos faziam caminhadas pela orla, assim como também se deitavam em cangas, algumas quase tão gastas como eles.

Pois lá estava o Eustáquio observando um menino, talvez com seus dois ou três anos, construindo castelos de areia. Diante de tal visão, o velho foi transportado para sua infância, quando também gostava de se fazer mestre de obras, mesmo não sabendo, naqueles idos, o que isso significava.

Eustáquio voltou os olhos para o jornal e, surpreso, descobriu que um velho conhecido, o Augusto, havia morrido. A viúva e familiares convidavam amigos e conhecidos para o velório, que ocorreria ainda naquele dia, logo ali no cemitério São João Batista.

O velho foi transportado novamente para o longínquo passado, quando ele e Augusto corriam por toda aquela orla em busca de tatuí. Ele voltou os olhos para o menino que brincava na areia. O tempo pode ser cruel, é verdade. Mas também é divertido quando se sabe sorrir.

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