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Dores que ficam

App de relacionamentos tem o seu lado mais sombrio

Publicado

Autor/Imagem:
Carolina Paiva/Edição

Os aplicativos de relacionamento eram populares antes da pandemia de covid-19, mas o isolamento forçado provocou um verdadeiro “boom”.

O Tinder, aplicativo de relacionamento mais baixado do mundo, alcançou a marca de 3 bilhões de swipes (quando o usuário desliza a foto de um pretendente para a esquerda ou para a direita no intuito de curtir ou não) em um único dia, em março de 2020 — e bateu esse recorde mais de 100 vezes desde então.

Embora esses aplicativos tenham ajudado muitas pessoas a se conectar durante anos, alguns usuários alertam sobre o ambiente que criaram.

Isso vale especialmente para as mulheres, que sofrem uma quantidade desproporcional de assédio e abuso nas plataformas, na maioria das vezes por parte de homens heterossexuais.

“Os aspectos mais difíceis para mim envolviam ser tratada como se estivesse sendo usada para trabalho sexual gratuito”, diz a escritora Shani Silver, de Nova York.

“Não é uma sensação boa. Machuca.”
Apresentadora do podcast de relacionamento A Single Serving, Silver usou aplicativos de relacionamento por uma década.

“Muitas vezes, me pediam um favor sexual antes de dizer “oi”, antes de me dizerem seu nome verdadeiro. A maior parte do que estava acontecendo naquele mundo para mim era desdém — muito desdém, me faziam sentir que tinha menos valor.”

Mensagens deste tipo proliferam entre as plataformas e afetam tanto homens quanto mulheres.

Mas as mulheres parecem ser afetadas de forma desproporcional. Dados de um estudo do Pew Research Center de 2020 confirmam que muitas sofrem algum tipo de assédio em sites e aplicativos de relacionamento.

Das mulheres com idades entre 18 e 34 anos que utilizam essas plataformas, 57% disseram ter recebido mensagens ou imagens sexualmente explícitas que não haviam pedido.

O mesmo acontece com meninas adolescentes de 15 a 17 anos, que também relatam ter recebido esse tipo de mensagem.

Um estudo australiano de 2018 sobre mensagens trocadas em plataformas de relacionamento revelou que o abuso e assédio sexista afetam desproporcionalmente as mulheres, que são alvo de homens heterossexuais.

Alguns usuários também relatam estresse psicológico — e experiências ainda mais extremas. Um estudo de 2017 do Pew Research Center indicou que 36% achavam suas interações “extremamente ou muito perturbadoras”.

No estudo do Pew de 2020, mulheres de 18 a 35 também relataram uma grande ocorrência de ameaças de lesões corporais — 19% (em comparação com 9% dos homens).

E, de maneira geral, um estudo mostrou que homens cisgêneros heterossexuais e bissexuais raramente manifestavam preocupação com sua segurança pessoal ao usar aplicativos de relacionamento, enquanto as mulheres se preocupavam muito mais.

A escritora de cultura jovem Nancy Jo Sales ficou tão abalada com sua experiência nessas plataformas que escreveu um livro autobiográfico sobre o tema: Nothing Personal: My Secret Life in the Dating App Inferno (“Nada pessoal: Minha vida secreta no aplicativo de relacionamento Inferno”, em tradução livre).

“Essas coisas se normalizaram tão rapidamente — coisas que não são normais e nunca deveriam ser normais, como a quantidade de abuso que acontece, e o risco e o perigo disso, não apenas físico, mas emocional”, diz ela, citando as experiências que viveu.

Ela adverte que nem todo mundo em aplicativos de relacionamento está tendo experiências negativas, mas tem bastante gente que está — “precisamos falar sobre os danos”.

Já que esse tipo de comportamento desconcertante estraga a experiência das mulheres em aplicativos de relacionamento, por que interações como essas conseguem se perpetuar?

Parte da resposta está na forma como essas plataformas são policiadas, tanto pelas empresas que as desenvolvem quanto pelas estruturas governamentais mais amplas.

Isso implica em efeitos prejudiciais para os usuários-alvo — e mudar a situação pode ser uma batalha árdua.

Quem se responsabiliza?
Há alguns mecanismos para reduzir esses problemas.

O Tinder, por exemplo, introduziu o machine learning (aprendizagem automática) para detectar mensagens e linguagem abusivas e, na sequência, pedir a quem escreveu para reconsiderar o conteúdo antes de enviá-la.

Em 2020, o Bumble adotou inteligência artificial para borrar imagens específicas e exigir o consentimento do usuário para visualizá-las.

Algumas plataformas também introduziram a verificação de usuário, em que combinam as fotos de um perfil com uma selfie fornecida pelo usuário (na qual ele é fotografado realizando uma ação altamente específica, para que a plataforma possa verificar a autenticidade da imagem).

A medida visa ajudar a prevenir golpes e abusos, já que os usuários não podem (em tese) se esconder atrás de identidades falsas.

A iniciativa é boa e “é melhor do que nada — mas acho que temos um longo caminho a percorrer”, diz Silver. Muitos usuários concordam.

“A única coisa que temos à nossa disposição é um botão de bloqueio. E embora ele esteja lá e você possa bloquear as pessoas, o que não levamos em consideração é que, para bloquear alguém, você precisa sentir antes a negatividade da ação”, diz ela.

Uma das maiores preocupações dos usuários é a violência sexual que pode ocorrer quando há um encontro presencial.

Embora haja um aumento no número de usuárias de aplicativos de relacionamento que tomam precauções como carregar seus telefones ou informar a família e amigos sobre seus planos, elas continuam vulneráveis ​​à violência sexual.

Em 2019, o departamento de jornalismo da Universidade Columbia, em Nova York, e o site de notícias ProPublica descobriram que o Match Group, que possui cerca de 45 aplicativos de relacionamento, só checa se há criminosos sexuais em seus aplicativos pagos, e não em plataformas gratuitas como Tinder, OKCupid e Hinge.

Essas descobertas levaram a uma investigação por parte de parlamentares americanos em maio de 2021, após a qual eles apresentaram um projeto de lei que exigiria que as plataformas de relacionamento aplicassem suas regras destinadas a prevenir fraudes e abusos.

Mas há uma brecha na lei americana de internet, a seção 230 da Lei de Decência das Comunicações, que determina que os sites não podem ser responsabilizados por danos causados ​​a terceiros por meio de suas plataformas.

Isso significa que essa indústria multibilionária em grande parte não é responsabilizada por interações abusivas — e cabe às plataformas introduzir medidas como as que o Tinder e o Bumble implementaram algumas delas.

(A BBC entrou em contato com seis aplicativos de relacionamento online diferentes, mas todos se recusaram a ser entrevistados para este artigo.)

A seção 230 é controversa — e há muitos apelos atualmente para atualizá-la ou eliminá-la por completo.

Muitos argumentam que a regra, que teve origem na década de 1990, está desatualizada porque as plataformas, assim como as pessoas as utilizam, evoluíram substancialmente.

Por enquanto, diz Sales, “é como uma terra sem lei”.

As coisas podem melhorar?
Atualmente, a maioria dos usuários não está protegida além das medidas de triagem que cada plataforma escolhe implementar. Muitos, é claro, estão encontrando conexões positivas — e até relacionamentos duradouros.

Mas, em geral, os usuários ainda utilizam as plataformas por sua própria conta e risco, sobretudo em países sem proteções explícitas.

Além dos avanços jurídicos e das medidas corporativas de segurança, também há mudanças culturais que podem fazer a diferença e ajudar a proteger as mulheres e outros usurários dessas plataformas, tanto online quanto offline.

Os homens precisam ser informados sobre como suas ações estão afetando as usuárias com as quais se comunicam: eles subestimam dramaticamente o impacto de seu abuso.

Noções arraigadas sobre papéis de gênero e uma atitude social frequentemente misógina devem ser desconstruídas para que um avanço maior aconteça — o que também significa que as mulheres precisam parar de aceitar esse tipo de interação como algo que “faz parte”, por assim dizer.

Para Silver, o abuso foi o suficiente. Ela saiu das plataformas, abruptamente, cerca de dois anos atrás. E não olhou para trás.

“Nunca me deram nada de bom. Então, por que eu continuava dando a elas acesso a mim, minha vida, meu tempo, meu dinheiro?”, questiona.

“E quando me fiz essa pergunta, realmente coloquei as coisas em perspectiva para mim. Foi a primeira vez que fui capaz de deletar (os aplicativos), e nunca senti sequer uma pequena vontade de baixar novamente.”

E conclui: “Parece dramático, mas é como se eu tivesse recuperado minha vida de volta.”

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