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Arquimedes ‘parabeniza’ a viúva e ‘mata’ a santa

Arquimedes, desde sempre, possuiu pouco talento para fazer amizades. Não fora popular nem mesmo entre os seis bebês que nasceram quase ao mesmo tempo no hospital do bairro. Não que fosse feio, mas o contrário também não era algo que se pudesse afirmar sem aquele incômodo peso na consciência.

Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, se bem que, durante a adolescência, alguém poderia facilmente afirmar que o rapaz passara fome. Que nada! Era mera consequência do estirão próprio da idade, época em que a desproporcionalidade tão disforme é apenas mais um dos problemas que aflige boa parte dos seres humanos. Quanto às espinhas, estas vieram aos quilos pontuar a face sem atrativos do então jovem Arquimedes.

Sem talento para os esportes, ao rapaz só restava ficar no gol, já que este era o local dos perebas. E, de tanto levar boladas na fuça, desistiu disso tudo e meteu as caras nos estudos. Formou-se com certo mérito e, antes dos 30, se enfiou num serviço burocrático em certa repartição pública.

Mal entrava no trabalho, ia direto para a mesa bem ao fundo, enquanto a maioria dos colegas, quase todos sorridentes, gastava tempo ao redor da mesinha do café. Esse distanciamento lhe trouxe apelidos jocosos, mas isso, aparentemente, não o incomodava, exceto um: taciturno. Todavia, se fazia de surdo e, consequentemente, se mantinha mudo.

Nos festejos na repartição, seja por conta de aniversários, seja por comemorações de final de ano, Arquimedes pegava seu quinhão de bolo e salgadinhos, além de um copo de refrigerante, e rumava para o seu canto. Diante daquelas iguarias, taciturno que era, passava mais tempo a pensar que comer. Não raro, as sobras eram maiores do que o comido.

Com a mente em polvorosa, Arquimedes nem se deu conta do desespero de seus colegas, quando o Joel, um dos mais animados, deu com a cabeça na quina da mesa de comes e bebes. Enfarte fulminante, sem nem tempo para uma mera prorrogação. O jogo se findou ali mesmo.

Diante de tamanha gritaria, Arquimedes foi despertado de seu transe. Olhou por um momento aquele rebu e, finalmente, tomou ânimo para ver o que estava acontecendo. Ele se aproximou e, então, logo percebeu o sangue escorrendo da testa do morto. Aquele líquido, vermelho como sangue, era sangue. Arquimedes se ajoelhou, esticou o braço e, utilizando a ponta dos dedos, não sentiu qualquer resquício de pulso no corpo ainda morno.

O enterro foi no dia seguinte. Arquimedes pensou até em não ir, mas as circunstâncias o obrigavam. Não que fosse amigo do falecido. Na verdade, nem nutria qualquer simpatia por ele. Entretanto, por conta das sessões de terapia, o homem precisa mudar de atitude diante da vida.

Arquimedes chegou ao cemitério, onde já se encontravam familiares e amigos do Joel. Doroteia, a viúva, chorava bem ao lado do caixão. Desolada, era amparada por uma fila de pessoas. Arquimedes, que nunca havia estado em um velório, entendeu que deveria entrar naquela fila e, então, se postou logo atrás de uma senhora de lá seus 70 anos.

O homem prestava atenção a cada afago que a viúva recebia. As palavras de conforto eram processadas na mente de Arquimedes, que, àquela altura, se assemelhava à hora do rush. De certo que precisava de um guarda de trânsito para tamanho turbilhão de pensamentos, mas logo chegou a sua vez. E, querendo ser original, não conseguiu escolher as palavras mais adequadas, o que aumentou ainda mais o choro de Doroteia.

– Parabéns, senhora! O Joel está mais bonitão do que nunca!

Todos olharam abismados para Arquimedes. Este nem percebeu o desconforto provocado e, antes que passasse a vez para o próximo da fila, findou suas mais sinceras condolências de maneira desastrosa. Seu cotovelo esbarrou na escultura de cerâmica ao lado do caixão. A santa espatifou no chão frio da capela. Pois é, Arquimedes acabara de matar a Nossa Senhora Aparecida!

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