Dois artistas visuais usaram as redes sociais nesta quarta-feira de cinzas (14) para apontar que a escola de samba Portela usou obras criadas por eles sem a devida autorização. A azul e branca de Madureira, bairro do subúrbio do Rio, levou para o sambódromo da Marques de Sapucaí o enredo “Um defeito de cor”, baseado no livro homônimo de Ana Maria Gonçalves.
No romance, Kehinde, mulher escravizada na África, que viveu boa parte da vida no Brasil, procura um filho perdido, que seria Luiz Gama, abolicionista, jornalista, poeta e advogado brasileiro.
O artista visual Tiago Sant’Ana fez uma publicação no Instagram em que afirma ter sido surpreendido ao notar uma escultura semelhante ao seu trabalho “Fluxo e refluxo (barco de açúcar)”.
“Não pude deixar de observar, com surpresa, num dos tripés da escola de samba, uma composição escultórica semelhante ao meu trabalho. Não há nenhum registro formal por parte da escola de se tratar de uma citação/referência/inspiração à minha obra”, escreveu.
“Nem mesmo no livro Abre Alas, publicação onde os carnavalescos descrevem as suas concepções para os desfiles, há qualquer menção”, complementa.
Sant’Ana lembra ainda que o trabalho artístico em questão fez parte de uma exposição de fantasias da Portela exposta no Museu de Arte do Rio (MAR). O artista afirma na publicação que o trabalho “Fluxo e refluxo (barco de açúcar)” foi criado em dezembro de 2020 e executado em 2021, no ateliê dele, em Salvador, para a exposição “Irmãos de barco”.
Ele detalha que para criar a obra optou por “um fundo em um azul profundo e denso que desse conta do sentimento de monotonia e de incerteza de uma travessia atlântica forçada e violenta”.
“Ao centro, a figura, se vê o equilíbrio na cabeça de um homem um barco branco composto de açúcar (material que possui em sua composição uma força narrativa para tratar das mazelas raciais na diáspora africana) e em sua base um torso feito em tecido também branco com renda (muito utilizado nas comunidades de terreiro)”, completa a descrição.
Ao fim da publicação, Sant’Ana justifica o registro: “A missão de uma pessoa artista perpassa muitas vezes também pelo ato de registrar e salvaguardar memórias. Se você não dá nome as coisas, darão por você”.
“Mãe”
O artista Emerson Rocha também publicou uma série de stories no Instagram em que conta ter ficado sabendo por terceiros que a obra dele, “Mãe”, estava sendo utilizada pela Portela.
“Num certo dia do ano passado eu fui surpreendido com diversas menções e muitas mensagens sobre como a fantasia da Portela com a minha arte era bonita e imponente. Que fantasia e que arte? Foi aí que descobri que estavam em exposição, no Museu de Arte do Rio, algumas fantasias do desfile da Portela que viria acontecer no ano seguinte”, lembra.
“Até então eu não tinha recebido qualquer contato da escola acerca da permissão de uso da arte, sobre os trâmites de direito autoral etc.”, pontua.
Emerson conta que, tempos depois, um dos carnavalescos da escola entrou em contato apenas o notificando de que o trabalho estava sendo usado em uma fantasia e que poderia, eventualmente, ser utilizado em uma alegoria também.
O artista diz ainda que recebeu a promessa de receber convites para participar do desfile, mas que só os recebeu na segunda-feira de carnaval (12), uma hora antes do início da apresentação.
“Não compareci ao desfile e fiquei extremamente chateado com a escola, com os carnavalescos e com a forma que fui tratado”, desabafa. “Foram desrespeitosos comigo e com minha arte”.
A despeito da insatisfação, Emerson Rocha elogiou o desfile da escola. “Foi muito, muito bonito. Enredo forte, fantasias bonitas e bem acabadas”.
“Pena que algo tão grandioso e importante vai ser relembrado por mim como um dos dias em que eu me senti mais desrespeitado como um artista preto contemporâneo e independente”, lamenta.
“Defendendo minha arte como uma mãe defende um filho”, finaliza.