“O bom conhecimento vem das diferentes perspectivas e experiências. Então acho que as ações afirmativas não são um ganho para os estudantes negros ou pobres cotistas, são um ganho para a sociedade brasileira. E eu espero que no futuro próximo a gente tenha pessoas jovens, formadas, com essa preocupação, formadas pela diversidade e que possam dar valor ao quanto que a equidade racial pode colocar o Brasil em outro lugar”, diz Márcia Lima, doutora em sociologia e professora licenciada da USP, universidade em que liderou o processo de criação e consolidação das cotas, antes de aceitar o convite para compor a equipe da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.
Márcia insiste que há uma distorção, no debate público, sobre a política de cotas. “Eu quero dizer que são cotas sociais, e não cotas raciais. O princípio da lei é a reserva de vagas para estudantes de escola pública. Depois vem a reserva de cotas por critério de renda e, por fim, uma subcota racial. Mas você fala isso, a oposição não tem essa escuta e está sempre batendo na tecla de que o branco pobre é excluído da lei, o que não é verdade”.
Acompanhe a entrevista, em que Márcia Lima fala também das próximas ações e metas do Ministério da Igualdade Racial:
Eu queria começar perguntando qual é a principal ação do ministério, aquela que mais avançou nestes meses de 2023, primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula.
O que a gente mais avançou aqui é justamente na institucionalização do ministério. Neste momento, ainda de muita construção de agenda, a gente fez entregas muito importantes no primeiro pacote da igualdade racial, lançado em 21 de março, fizemos boas entregas nos 100 dias de governo. Decretos importantes, relançamos a programa Aquilomba Brasil. Estamos reconstruindo o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Eu não destacaria neste momento uma única política, mas, sim, o quanto que esse conjunto de políticas tem representado para a importância e a ação do ministério. Lembrando que é um ministério novo, vindo de um período muito difícil. É construir um novo ministério, mas também retomar a importância e as ações da pauta de igualdade racial dentro do governo federal. Então, acho que a gente está conseguindo demonstrar para a sociedade e, dentro deste governo que tem 37 ministérios, a importância do Ministério da Igualdade Racial.
Eu me recordo que em 2003 a mídia não tinha reservas ao criticar a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, por considerar inchaço da máquina, algo desnecessário. Eu imagino que depois de tudo que vivemos, essa abordagem diminuiu, pelo menos na mídia tradicional.
Eu concordo com você. São 20 anos de diferença e 20 anos em que o debate público sobre a questão racial se expandiu muito no Brasil, principalmente pelas políticas de ações afirmativas, pela lei de cotas na universidade e no serviço público. A gente teve o episódio George Floyd, que teve impacto enorme. A própria pandemia também recolocou muito a questão das desigualdades raciais. Realmente hoje não se tem o mesmo estranhamento.
Mas, por outro lado, a gente vive um momento de muito retrocesso político. Uma direita que é muito fortalecida, inclusive dentro do Congresso. As dificuldades são de outra ordem. A imprensa tradicional, o mercado editorial, passaram por uma transformação em termos de publicar sobre questão racial, publicar autores negros. Muita coisa positiva aconteceu. Mas hoje os desafios vêm dessa direita, dessa rede social, muito raivosa.
O ministério identifica qual ataque nas redes é mais frequente?
Ataques muito personalizados, contra pessoas públicas e contra pessoas no comando do ministério. Mas a gente vê também que a agenda da ação afirmativa, das cotas, é muito criticada. Eles criticam e batem num ponto que não faz muito sentido. Eu quero dizer que são cotas sociais, e não cotas raciais. O princípio da lei é a reserva de vagas para estudantes de escola pública. Depois vem a reserva de cotas por critério de renda e, por fim, uma subcota racial. Mas você fala isso, eles não têm essa escuta e estão sempre batendo na tecla de que o branco pobre é excluído da lei, o que não é verdade. Enfrentamos uma tática que é justamente essa inversão, essa distorção.
Eu sempre costumo dizer que no Brasil tem dois grandes desafios para enfrentamento da desigualdade, que é a educação e a terra. Dois grandes patrimônios da elite brasileira. As ações afirmativas e, ao mesmo tempo, a questão quilombola, em que o grande desafio do projeto é sempre chegar na titulação de terras. A morte de mãe Bernadete, a morte de outras pessoas quilombolas, a violência, têm a ver com a posse da terra. Eu acho que a terra é um capital muito, muito forte, muito central e que mexe realmente na estrutura de poder, assim como a educação.
Quantas áreas quilombolas estão pendentes de titulação, e qual é a meta do ministério?
Olha, ainda é uma coisa que tem que ser retomada, fazer esse levantamento. Há uma secretaria no ministério voltada especificamente para cuidar de quilombos e povos tradicionais de terreiros. A política de titulação em larga escala é uma política de muito recurso, é uma política de bilhões. A gente precisa avançar do reconhecimento da posse da terra para a titulação. Mas é um processo muito demorado, inclusive juridicamente. O que o ministério tem feito bastante é promover projetos que melhorem a estrutura desses territórios, para promover a permanência das pessoas nos territórios.
E o tema dos territórios negros, para mim, está para além do território, no sentido que a gente normalmente utiliza o termo para falar das áreas rurais. A gente também tem a questão de territórios nas áreas urbanas, que são as periferias. Territórios negros e que sofrem os mesmos problemas. A gente viu isso muito na pandemia: como que o acesso a recursos desses territórios era diferenciado para espaços mais negros ou menos negros. Eu estudei muito a desigualdade na Covid-19 e isso era uma coisa que chamava muita atenção. Há um grande desafio, que é titular, mas também tem o desafio de dar condições de vida para as pessoas nesses territórios.
Creio que essa tarefa de aperfeiçoar as condições de vida nos territórios exija o trabalho conjunto com outras pastas do governo. O ministério é muito envolvido com ações transversais, que precisam de parceria. Os demais ministérios têm sido parceiros de fato?
Sim. Eu acho que nesse ponto a ministra Anielle Franco tem um papel fundamental pela figura que ela representa, pela história que ela tem e a maneira como ela chega a esse ministério. Acho que ela traz a importância de construir essa comunicação. A gente, obviamente, a depender da pauta, tem mais proximidade com um ou outro ministério. Mas a gente tem diálogos sempre muito profundos. Por exemplo, em relação às cotas na universidade, nós trabalhamos muito com a deputada Dandara (PT-MG), que era a relatora do projeto, mas também com o Ministério da Educação, Ministério de Povos Indígenas, Direitos Humanos. Nós todos participamos da discussão desse processo de revisão da Lei de Cotas no ensino superior. Nós estamos trabalhando muito também com o Ministério da Gestão e Inovação, na questão da lei de cotas no serviço público. Vamos lançar alguns programas ou planos que também envolvem muitos ministérios. O programa Juventude Negra Viva tem 15 ministérios. O Plano Nacional de Ações Afirmativas, que está na minha pasta, também envolve muitos ministérios. Nesses últimos seis meses houve um trabalho intenso com dois grupos interministeriais. E uma coisa que eu achei muito positiva do governo foi que na época de preparação do Plano Plurianual (PPA), nosso ministério e os ministérios das Mulheres e Povos Indígenas participaram das oficinas de todos os outros ministérios, para ver como que a gente poderia levar nossas pautas para dentro dos demais ministérios, garantindo inclusive que eles vislumbrassem recursos financeiros para esses três grupos. A gente tem que liderar a construção dessa pauta transversal, e tem conseguido engajamento dos ministérios nesse processo.
Nos primeiros mandatos de Lula e Dilma, na área ambiental, existiam metas, como a de redução do desmatamento, e os ministérios envolvidos faziam reuniões periódicas de avaliação, em que cada um prestava contas do que havia sido feito para atingir aquela meta. Imagino que para vocês isso também seja importante, embora a medição de metas seja diferente.
Sim. Como todos os outros ministérios tiveram que fazer no PPA, colocar no papel e apresentar quais são as metas, a gente também. Há diferentes formas de medir esses indicadores. Neste primeiro ano, o que a gente está fazendo é estabelecer esses indicadores. Por exemplo: letalidade da juventude negra, empregabilidade, políticas de ações afirmativas. No decreto que vai ser publicado, da lei de cotas no ensino superior, foi estipulado um grupo de acompanhamento dessas políticas, algo que não foi feito antes. Quando a lei foi aprovada, em 2012, as universidades tinham um prazo para começar a implementar e deveria ter esse acompanhamento, só que aí vieram governos que não fizeram esse processo. O Inep tem condições e vai nos dar meios de fazer esse acompanhamento. Nós estamos também construindo indicadores especificamente para acompanhar o Juventude Negra Viva, porque o projeto Juventude Negra Viva não é só sobre a letalidade. Para enfrentar a letalidade desse grupo, a gente tem que olhar para educação, tem que olhar para outros elementos, como o acesso ao emprego, que é um dos grandes problemas da juventude negra no Brasil. Aí cada ministério envolvido uma meta pré-estabelecida.
Você pode falar em alguma meta, por exemplo, da letalidade da população negra? Um índice que seja objetivo para quatro anos?
O plano que a gente vai lançar é um plano para 12 anos. Não adianta você achar que vai resolver determinados problemas históricos e estruturais no curto ou médio espaço de tempo. Mas a gente tem metas. Por exemplo, o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial tem como meta a adesão de estados e municípios ao sistema. No programa de ações afirmativas, a gente está estabelecendo parcerias com outros ministérios para concessão de bolsas. As metas para as ações afirmativas, neste momento, uma delas a gente já cumpriu, que era a revisão da lei de cotas. E ano que vem nós temos a renovação da lei de cotas no serviço público. Renovar a lei é uma meta. O que não dá para você estabelecer, neste caso das cotas no serviço público, é quantas pessoas vão entrar, porque não sabemos quantos concursos serão abertos. O que temos hoje são cotas de 20% das vagas, e a gente quer passar para 30%. A gente aprovou no dia 21 de março um decreto presidencial que estabelece que 30% dos cargos e funções comissionados fossem preenchidos por pessoas negras. Não é uma reserva de vagas. Neste caso, até dezembro de 2025, a gente tem que ter esses 30%.
E sobre as cotas no ensino superior, a gente consegue falar também em metas numéricas?
A meta é 50% de reserva de vagas para egressos da escola pública. Dentro desses 50%, metade para estudantes de famílias de até um salário per capita, e a gente incluiu também agora os quilombolas como beneficiários das políticas. É difícil falar de uma meta de número de estudantes. Para poder estabelecer uma meta, eu teria que te dizer quantos estudantes negros vão terminar o Enem e vão se candidatar. Na pandemia, houve uma redução de 50% de estudantes pretos e pardos entre os inscritos para o Enem. A gente tem que fazer com que os estudantes continuem demandando e estando aptos a cursar o ensino superior.
A direita pode esvaziar políticas públicas sem extingui-las de forma explícita, como neste caso do Enem.
No programa de permanência estudantil, as bolsas foram reduzidas, o valor da bolsa não era atualizado. A pandemia criou muitos problemas para que os alunos negros e pobres continuassem nas universidades. Os seus provedores principais morrendo…Eu vi essa experiência na Universidade de São Paulo, de alunos que tinham pai e mãe cuidando, trabalhando para que eles pudessem cursar a universidade, e eles perderam esses provedores. Não tinham mais como se manter na universidade. Há muitas formas de esvaziar as políticas. Não ter concurso, por exemplo. Muitas universidades ficaram sem recurso nenhum. Tirar o dinheiro da permanência estudantil, tirar o recurso da universidade, reduzir o número de bolsas de graduação e de pós-graduação é uma forma muito eficaz de comprometer a política.
Para a juventude negra que sonha em ingressar no serviço público, qual expectativa que você sugeriria que tivesse?
O Ministério da Gestão e Inovação, da ministra Esther Dweck, tem sido um grande parceiro nosso, principalmente na construção dessa renovação da lei de cotas para concurso público. Como também está sendo parceiro na regulamentação do decreto de 30% de vagas nos cargos e funções comissionados. Nesse sentido, a ENAP, que é a Escola Nacional de Administração Pública, também. Há diversos cursos para lideranças, como o Lidera Gov, um curso que existe há muito tempo, e que teve agora uma edição só para servidores negros, para que eles pudessem se capacitar para funções comissionadas e cargos de liderança. A carreira no serviço público para trabalhadores públicos negros é mais lenta, tem mais obstáculos do que para os demais. Eu estou esperançosa que a gente vai, nessa nova versão, na renovação da lei 12.990, conseguir trazer bons quadros, inclusive porque a gente agora tem ações afirmativas que aumentaram o ingresso de pessoas negras no ensino superior. Eu acho que o ministro Camilo Santana tem se empenhado muito nessas questões de permanência. Uma das primeiras coisas que o Ministério da Educação anunciou foi aumento do número de bolsas e do valor das bolsas. Embora a gente sempre fale que o valor da bolsa é muito baixo, a depender da região onde você está implementando essa bolsa, ela pode ser baixa, mas ela faz muita diferença.
A gente construiu agora também um apoio para bolsas de iniciação científica para jovens negros. Então o aluno tem bolsa permanência, mas ele também precisa ter acesso a iniciação científica, à monitoria, porque é isso que melhora a formação dele dentro da universidade.
E é importante as instituições também terem suas iniciativas nesses aspectos. E para isso a gente vai lançar no dia 20 de novembro o Programa Nacional de Ações Afirmativas, cuja ideia é justamente dar segurança jurídica, dar condições de que as universidades públicas e privadas, o mercado de trabalho público e privado, todo mundo possa se ancorar neste programa desenhado pelo governo federal e implementar essas políticas. Os casos de judicialização das ações afirmativas, embora com todo o reconhecimento no Supremo Tribunal Federal, são muito recorrentes, principalmente para o concurso público. O objetivo do programa é fornecer diretrizes para órgãos públicos, autarquias federais. E também há o setor privado, que também nos procura muito, pedindo orientações para implementar ações afirmativas.
São muito diferentes a missão de ser professora e essa, de ser gestora pública? O que que é mais emocionante, dá mais sentido de realização?
Eu acho que não tem muito uma resposta padrão, porque eu sempre fui uma docente, uma pesquisadora muito inquieta. Então, eu sempre tenho vontade de mudar temas e inventar coisas na sala de aula, inventar formas de avaliação. Eu diria que eu tenho um conteúdo criativo muito forte dentro de mim, que às vezes é muito bom, mas que às vezes também nos traz muitos desafios. Então eu tinha essa inquietude de conhecer o que era fazer a gestão pública, formular uma política pública. Quando ensina políticas públicas, você fala das políticas, mas também dos processos políticos, duas coisas muito conectadas. Quando você vê um projeto de lei que foi aprovado, na posição de analista você critica, fala sobre aspectos que deveriam ter entrado no projeto, nas coisas que faltaram. No lugar do gestor, você enfrenta inúmeras barreiras constitucionais, um monte de questões que você simplesmente não pode fazer. Você tem que pensar o seguinte: ‘bem, eu tenho que apresentar este projeto de lei, essa proposta para este Congresso, pra onde que eu vou?’. Esse é um dos grandes desafios, realmente ver a micropolítica, a política do cotidiano, as negociações que são necessárias para você fazer uma boa política pública. Eu me lembro que quando eu estava estudando o ProUni, eu cheguei a entrevistar o hoje ministro da Fazenda, que na época era ministro da Educação, Fernando Haddad, e eu me lembro dele me dizer perfeitamente: ‘Bem, o que nós propusemos e o que saiu do Congresso foram coisas muito diferentes’. Então, nem tudo o que a gente tenta fazer, digamos assim, sai exatamente como a gente pensou.
Professora, você tem uma experiência de ação política dentro da universidade, e agora vivencia uma experiência dentro dessa política mais institucional. Isso é uma experiência emocionante? Tem algo que pode atrair as novas gerações?
Eu acho que você usou a palavra certa. É emocionante. E acho que é muito importante para o jovem, pelo menos aquele que tenha formação em áreas compatíveis com a gestão pública, que eles se candidatem e ocupem esses espaços. Eu conduzi minha carreira sempre muito atrelada à pesquisa empírica, e enxergando a pesquisa e a formação intelectual, assim como formação de novas gerações, também como um projeto político. Estar aqui nessa perspectiva é muito legal e muito importante. Eu tenho aprendido muito. E eu acho que nós, cientistas sociais, a gente morre como profissional no dia que a gente em que deixa de aprender.
Eu discutia muito isso na universidade: nós estamos formando cientistas sociais para o século 21? A minha aposta, digamos assim, é numa nova geração de gestores públicos. As ações afirmativas vão ser fundamentais para o futuro do Brasil, porque você não tem produção de conhecimento sem diversidade. O bom conhecimento vem das diferentes perspectivas e experiências. Então acho que as ações afirmativas não são um ganho para os estudantes negros ou pobres cotistas, é um ganho para a sociedade brasileira. E eu espero que no futuro próximo a gente tenha pessoas jovens, formadas, com essa preocupação, formadas pela diversidade e que possam dar valor ao quanto que a equidade racial pode colocar o Brasil em outro lugar.