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As grandes aventuras na jornada da volta de Uli

Uli voltou! Todo estropiado, mas retornou à casa.

Depois de visitar o veterinário para tratar de sua pata quebrada e de receber mil beijos e afagos de seus escravos, num festival de doçura que quase provocou um coma diabético, o gatinho Uli reuniu a bicharada para contar suas aventuras. Estavam todos lá: a Rosa branquinha, outros gatos e cachorros das vizinhanças e o sagui, que olhava tudo aquilo com os olhos arregalados.

Famosos por sua lógica, os portugueses têm um costume que faz os brasileiros no além-mar rolarem no chão de tanto rir: o de começarem uma frase com a conclusiva “portanto”. É que há um parêntese oculto no início. (“Todos sabemos das condições que levaram ao que se está a passar). Portanto…”. Foi o que fez Manuel Ulianov, o Uli, lusitano até a medula.

– Portanto, pulei o muro e parti. Se calhasse, embarcava numa caravela, mas soube que não há mais caravelas. E de fato nem cheguei perto do mar, caminhar horas seguidas cansa muito e além do mais tinha de buscar comida. E os gatos precisamos dormir e cochilar umas 18 horinhas por dia, não é mesmo?

Os outros gatos miaram gravemente em concordância.

– Portanto – retomou Uli –, segui caminho e me deparei com um balde de lixo, de onde vinha um delicioso cheiro de sardinhas. Tenho estirpe, não sou um vira-baldes, mas derrubei o caixote e me banqueteei. O odor atraiu alguns gatarrões de maus bofes, houve rosnados e ensaios de briga, mas fui firme e os expulsei, embora lhes deixasse o sobejo.

– Meu herói! Meu amorr! – ronronou Rosa branquinha, antes de cheirar delicadamente o fiofó do narrador.

Uli retribuiu a homenagem e continuou.

– Foi na segunda noite que vi os monstros. Eram dois, enormes, com grandes olhos amarelos e um rosnado alto assustador.

– Não eram camiões com as lanternas acesas? – perguntou cético outro gato, que morria de ciúmes de Uli por causa de Rosa branquinha.

– Nada disso, ó pá. Se calhar, algum feiticeiro lhes deu temporariamente a forma de camiões, mas percebi bem que eram monstros. Tinha acabado de acordar de umas 16 horas de cochilo, estava meio sonolento. O primeiro golpeou-me de raspão. Um pouco mais e não estaria aqui a contar-vos essas aventuras.

– Meu herói! Meu amorr!– repetiu Rosa, dessa vez complementando a cheirada no fiofó com uma lambida sensual no focinho de Uli. Ele, cavalheirescamente, retribuiu, e em seguida continuou.

– Vou passar algum tempo com a escrava e o escravinho, gosto deles. Mas, sem dúvida, partirei em busca de novas aventuras. Com uma diferença, porém: ouvi minha escrava ler para o escravinho um livro chamado Don Quixote, e aprendi que um cavaleiro andante, quer dizer, quem parte em uma jornada, precisa de um escudeiro.

Nesse momento, voltando-se para o sagui, perguntou-lhe:

– Que dizes, ó pá? Queres ser meu escudeiro e acompanhar-me em minhas andanças?

O sagui engoliu em seco, mais vezes que o normal e começou a responder em guimarãesrosês castiço (aliás, alguns pesquisadores sustentam que o autor de Grandes Sertões: Veredas baseou as falas dos personagens mais matutos na linguagem dos saguis):

-Vossinhô utúrje, mestre…

Nesse momento interrompeu-se a proferiu palavras que surpreenderam a todos, especialmente a ele mesmo:

– Ossenhor é Vossensenhoria? Bamo sim, mestre. No graminhá…

A guinada se explica. O brasileiro é homem cordial, movido pelo coração, não pela razão e muito menos pela lógica, e o sagui, bicho brasileiro, cordial, que já cruzara o Atlântico, sentiu um impulso repentino de ir adiante, cada vez mais longe. E incorporou sem armas e sem bagagens a personagem de Sancho Pança do Don Quixote felino.

Então, Rosa branquinha, escrava e escravinho de Uli, curtam ao máximo a companhia do gatinho e do sagui, provoquem-lhes um coma diabético moderado com seus beijos e carinhos. Pois viajar é preciso e, se calhar, algum dia eles vão partir.

*Continuação do conto Aventuras de Uli, publicado por Notibras no domingo, 3.

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