“Acabo de chegar ao local onde um deslizamento de barreira, infelizmente, vitimou duas vítimas”, afirmou João Campos (PSB), ao chegar ao Córrego da Bica, favela pendurada em um morro da Zona Norte do Recife, onde mãe e filha haviam sido soterradas no quarto que dividiam em seu barraco, após o deslizamento de uma barreira.
Há três dias chove torrencialmente na Região Metropolitana do Recife, revelando a cidade que existe por trás da propaganda, que a cada ano se defronta com as chuvas de verão, que provocam incômodo nas zonas mais ricas da cidade com os seus automóveis impedidos de circular, mas que leva desespero às zonas mais pobres, onde as mortes acontecem.
Maria da Conceição Brás de Melo, 55, e sua filha Nikolle Keli Melo de Souza, 23, já estavam mortas quando os bombeiros atenderam ao pedido de socorro no Código da Bica. O corpo de Maria da Conceição foi encontrado logo após o deslizamento da barreira, mas o da sua filha só foi retirado dos escombros na manhã desta quinta-feira. Um irmão de Nicolle escapou ileso da tragédia.
Mas em outros pontos pobres da cidade as chuvas também fizeram vítimas fatais. Ruan Pablo da Silva Melo, de 21 anos, André Fernandes da Silva Campelo, 43, Myriam Vitoria Amorim da Silva, 24, Valdomiro Simões da Silva Neto, 18,e um homem resgatado no bairro da Estância que não foi identificado. Eles morreram m decorrência de choques elétricos, afogamento e soterramento após deslizamento de barreiras.
As mortes por choque elétrico, foram três dessa vez, são ocorrências comuns no Recife e nas cidades que circundam a capital pernambucana. São provocadas pela fiação desordenada dos fios, que além de prejudicar a paisagismo, é uma verdadeira tragédia anunciada, pois com as chuvas e ventos os fios arrebentam, se espalham pelas calçadas ou misturam-se com a água da chuva e matam por choque e vazamento de energia.
Raquel Ludermir, gerente de incidência em políticas públicas da Habitat para a Humanidade Brasil, ma ONG global não governamental, sem fins lucrativos, que tem como causa a promoção da moradia como um direito humano fundamental afirma que as mortes no Recife são evidências de desastres socioambientais que “não são novidade nem coincidência e afetam sempre as mesmas pessoas”.
“O que vemos hoje não é coincidência, não é novidade e sim fruto de um processo que a gente chama de racismo ambiental, que é basicamente o fato de que esses desastres têm um endereço muito bem definido, um gênero muito bem definido, uma cor e raça muito bem definida: são principalmente as pessoas pessoas pretas, pobres e periféricas”, explicou ao Jornal do Commércio.
Ela pontua que, além da crise climática, existe uma dívida histórica do poder público em relação à questão da moradia, da infraestrutura e da urbanização das áreas onde as pessoas mais precarizadas moram no Recife e na região metropolitana.
“É importante entender que ninguém escolhe morar em em área de risco. Geralmente, morar em área de risco é um resultado da falta de alternativa de moradia que caiba no bolso e tenha as condições mínimas de salubridade, segurança habitacional e segurança fundiária”, esclarece.
Para ela, é necessário o desenvolvimento de políticas intersetoriais que consigam abarcar o problema da habitação e infraestrutura nos municípios. “Não adianta fazer a remoção se não vai haver solução habitacional para aquelas famílias, porque provavelmente essas famílias vão para outras áreas de risco que caibam no bolso”, pontua.
As “vítimas vitimadas” que o prefeito João Campos encontrou no Córrego da Bica, certamente não seriam tão vitimadas assim, se a Prefeitura atentasse para obras que colaboram como escoamento das águas de uma cidade que tem a maioria de suas áreas de aterros sobre mangues, é litorânea, e está abaixo do nível do mar, nas marés altas.
Bióloga da Universidade Federal de Pernambuco, Soraya El-Deir defende o reforço das ações voltadas para o escoamento das águas para minimizar os transtornos. “O governo municipal deu um passo na hora que começou a fazer jardins que acabam absorvendo a água, áreas de sumidouro, mas veja, ainda não é suficiente, porque a gente ainda tem um agravante: há determinadas áreas da nossa cidades, determinadas ruas, que estão abaixo do nível médio da maré mais alta”, disse em entrevista à Rádio Jornal.
De acordo com a professora, quando a maré atinge de 2,20 m a 2,25 m de altura, é natural que essas ruas alaguem, o que é potencializado pelas chuvas.
A bióloga também aponta, além dos problemas estruturais e geográficos da cidade, a questão social. Para ela, há um analfabetismo ambiental na população, que não consegue compreender as consequências das suas ações para o meio ambiente. “As pessoas não têm consciência de que o lixo, quando é jogado na rua, não desaparece. Ele fica, e acaba sendo canalizado exatamente para as vias de drenagem, entupindo estas”, lamentou.
Soraya El-Deir apontou ainda que o déficit habitacional faz com que as pessoas precisem construir de forma irregular na beira dos rios, o que também gera impactos ambientais.