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Seiko

Assistente kamikaze mata bla bla bla do chefe engomadinho

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Foi em São Paulo, na Lapa, na rua do Curtume, na boa e velha Abril Cultural, que Seiko fez o seu ninho. Era uma descendente de japoneses, de idade indeterminada. Devia ser jovem, a esmagadora maioria da Arte e da Redação tinha menos de 25 anos. Não era bonita nem atraente e não gostava do fuzuê. Para nós da Cultural, legítimos representantes da intelligentsia e da malemolentsia paulistanas, esse último não atributo era um crime imperdoável.

Afinal, no início dos anos 70, era preciso militar contra a ditadura e pela revolução sexual, numa fase afortunadamente pós-pílula e pré-aids. Comer e dar era preciso; e, sei lá, viver também. Aparentemente, ela não fazia nenhuma dessas três coisas. Resultado, virou o alvo de um sem-número de brincadeirinhas perversas mas divertidas.

Uma das melhores (piores), que já usei em um dos meus contos, começava pela ida de Seiko ao cinema com um carinha. Lá pelas tantas ele abre a braguilha, põe pra fora e pede a ela:

– Seiko, querida, segura aqui pra mim…

E ela, desconfiada:

– Por quê? Cê vai aonde?

Se ela não sabia o que fazer na cama, ou no cinema, também estava meio estagnada profissionalmente. Entrara na Cultural como assistente de Arte e, vários anos depois, continuava nessa função. Seu trabalho básico era pestapar, versão brasileira do verbo inglês paste up. Significava colar, num diagrama, os textos produzidos pelos bambambãs da Redação, que vinham divididos em blocos.

Os assistentes também realçavam as linhas e aplicavam fundos nas imagens criadas pelos bambambãs da Arte. Era uma rotina cansativa; Seiko a cumpria conscienciosamente, debruçada na prancheta, numa posição não muito diferente daquela de suas ancestrais, que se inclinavam para plantar mudinhas de arroz em terrenos alagados do Japão ou do interior paulista. Trabalhava geralmente em silêncio, sem brincar com os colegas da Arte e muito menos com os malucos da Redação.

Mas houve um dia em que a voz de Seiko foi ouvida. Não testemunhei sua fala, já havia sido intimado pelos engravatados (eram poucos na Cultural, mas existiam) a editar e agitar em outra freguesia. Mas soube do caso por fontes fidedignas.

O contexto foi o seguinte: o rei Lear da Abril dividiu seus domínios entre os dois filhos. Como os guapos rapazes tinham nomes americanos, vou chamá-los aqui de Stu e Very Stu – e adianto que Stu nada tem a ver com Stuart ou algo semelhante. A capitania hereditária conhecida como Abril Cultural teve, infelizmente, Very Stu como capitão-donatário. E, bem no esquema americano, ele decidiu conquistar os corações e mentes da tigrada

No dia em que Seiko falou, Very Stu reuniu os funcionários e fez um discurso especialmente estúpido, cheio de promessas mirabolantes. Era um jogo de cartas marcadas: ele fingia que iria cumprir tudo o que anunciou e a moçada, sorrindo, fingia que acreditava. Ele mal acabara de mentir, ouviu-se uma vozinha feminina que virou a mesa, em dialeto paulistano-nipônico:

– Conversa fiada, ne? Bra-bra-bra.

Era a versão japonesa do bla-bla-bla brazuca.

O silêncio de morte foi quebrado pelos engravatados, que acorreram em socorro de Very Stu. Mas foram inúteis os esforços para conduzir a um desfecho civilizado a reunião: o bra-bra-bra continuava a ressoar no local. Uns 10 minutos depois, o encontro foi encerrado.

Logo que o donatário e seus acólitos partiram, os bambambãs da Arte e da Redação correram em massa para felicitar a kamikaze, que, se não afundou, pelo menos danificou seriamente o USS Very Stu. Ela recebeu os parabéns sem entender por que mencionavam seu heroísmo, e falou pela segunda e última vez, no seu dialeto.

– Um desconhecido vem aqui falar besteira, ne? Bra-bra-bra…

Aí caiu a ficha, ela não tinha ideia de ter estado na augusta presença de Very Stu. Os líderes da Arte e da Redação se entreolharam e fizeram uma promessa silenciosa: moveriam céus e pedras para Seiko não ser demitida.

Mas não foi preciso um esforço sobre-humano: o capitão-donatário decidiu não detonar a kamikaze, era muito mais excitante, e divertido, detonar a Cultural inteira. Assim, Seiko prosseguiu com suas pestapagens, nem percebeu que seu emprego estivera por um fio.

Por quanto tempo continuou na Cultural, não sei; também ignoro se continua viva. Mas sei que, na canção O ciúme, Caetano Veloso criou um verso que fala de perto a todos os veteranos da Abril Cultural: “Tantas almas esticadas no curtume”. Todos nós, que trabalhamos ali, deixamos um pouco de nossas almas na rua do Curtume. E entre elas está a alminha de Seiko da Arte, kamikaze inconsciente, heroína involuntária da intelligentsia e da malemolentsia paulistanas.

Que os deuses a protejam, onde ela estiver.

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