Roberto Tardelli
Há uma inversão perversa na formulação do Ministro Gilmar Mendes, que abriu a estrada para que o Caixa 2, recursos extra-numerários, não-contabilizados, ganhassem o direito a uma anistia amiga.
Até que ponto o Ministro é cidadão? Ele tem direito a time de futebol, tem direito a amar perdidamente, tem direito a andar pela praia, até o Leblon. Tem direito a embebedar-se naqueles dias em que a vida deixa de valer a pena, tem direito a cantar no banheiro, tem direito a gritar um palavrão, tem direito a um churrasco com amigos, tem direito a sentar-se no cinema ou no teatro sozinho e não ser incomodado.
Tem direito a tocar ou ouvir um violão. Pode dançar na gafieira, pode cozinhar, pode escrever poemas, pode até mentir sobre o que não fez e diz ter feito, pode contar vantagens, pode ostentar o anel, a amante ou o carrão. Pode pensar que ninguém é melhor do ele, pode sentir que ninguém é pior do que ele. Pode ter manias, TOC, pode jamais descer num quinto andar, por exemplo, ou, nunca, por nada nesse planeta, deixar um quadro inclinado na parede. Pode sentir saudades.
Pode voltar sozinho, para onde foi acompanhado. Pode perder no jogo e no amor, pode ganhar no jogo ou vice versa. Pode ter um cão ou gato, que o receba, como nos recebem esses nossos companheiros silenciosos. Pode ver a meia-noite, com um copo de whisky nas mãos, ouvindo a música que apenas existe em seu mundo mais remoto. Pode querer saber que raios virou seu melhor amigo de infância, aquele um ao lado de quem sonhava com o mundo adulto, idealizado e feliz.
Na função que enverga, de integrar uma corte que tem por finalidade dizer a última palavra, o Supremo Tribunal. Me lembro do primeiro Supremo que vi, era criança e minha mãe colocou à mesa do domingo o Supremo de Frango, para comemorar os anos de meu irmão. Um tio, corintiano até a alma e além da alma, me dizia que Rivelino era um craque Supremo. Cresci e Supremos eram os seios de uma vizinha, que jamais me notou, bem mais velha, naquela fase da vida em que dois anos seriam capazes de separar gerações.
Só grande já, soube que havia um Tribunal Supremo; depois dele, nada, depois dele, o vale sombrio da força bruta. Naqueles dias de ditadura militar, Ministros do Supremo, o mesmo nosso Supremo, davam exemplos históricos do que poderia ser independência e dignidade. Pouco se falava de Supremo, quase ninguém sabia da existência de um Supremo tão Supremo que nada havia que o superasse.
Uma espécie de grande pai, que desse a última palavra sobre tudo, qualquer coisa, um professor ameaçava: podem até dizer que o quadrado é redondo. Tão supremo que revogava as linhas geométricas. Pensava no Supremo frango de minha mãe, com creme de milho.
O Supremo que conheci era aterrador porque era silencioso, só rompendo seu mutismo em estranhos debates, que, por serem supremos, jamais poderiam ser debates. Os Supremos juízes debatendo entre si era uma visão que eu não alcançava, muito no Olimpo para um recém-formado, no interior do estado. Uma vez, uma única vez, um deles foi a uma Semana Jurídica, que recomeçava timidamente, no fim da ditadura. Descobri que existiam além das abstrações jurídicas.
A voz suprema calava as outras vozes, impunha ordem ao ambiente e o quadrado e o seu redondo que se virassem nas novas identidades trocadas. Todavia, era sempre a última palavra.
Parece um bolero e é mesmo um bolero jurídico: a Última Palavra, capaz de calar os Doutos, capaz de silenciar os hermeneutas, capaz de vergar a Constituição ao que dela os Supremos Juízes extraíram. Depois do vozerio, da algazarra das crianças, do falatório dos bacharéis, els impõem a última palavra.
Por isso, é assustador quando um deles, desgarrado, ao invés de solucionar o impasse, cria-o. Gilmar Mendes abriu a cena e criou o impasse, trouxe a discórdia, plantou a desavença. Na polêmica que criou acerca dessa praga eleitoreira, chamada Caixa 2, o Ministro deixou de sê-lo, indo além do que as fronteiras de seu jardim permitiriam.
Ele avançou o sinal e não deixou sua opinião, que somente existiria em sua cadeira suprema; fora dela, o que ele exerceu foi abuso de poder, porque não se adiantou, mas abriu o caminho para que se operasse a mais atroz maldição jurídica: o seletivismo, o que não se permite a alguns, será permitido a outros, que estão mais próximos do banquete em que se devora a leitoa gorda do poder.
Para alguns, os deserdados, os despejados, os expulsos, o caixa 2 é crime, gerou prisões, gerou uma ação penal midiática, a primeira; gerou o primeiro super-juiz, um que mandou exatamente Gilmar Mendes ouvir as ruas, porque já conseguia ouvir os sons do processo, os gritos de dor dos advogados e daqueles que viam claramente que o som das ruas era, em verdade, um exercício de ventriloquia de massa.
Todos saímos de nossos anonimatos, indo aos braços da redes sociais, que parecem teriam suprimido as solidões humanas, afinal, sempre haverá alguém disposto a nos ouvir. Os juízes, supremos ou não, foram a elas e as tornaram destinatárias de suas opiniões, dadas fora de qualquer âmbito de discussão processual.
A antecipação da opinião nas redes sociais cria um frissom, um suspense. Será que ele vai decidir conforme prometeu? Será que não? Os advogados, sabendo a opinião do juiz, como farão? O réu, vendo anunciada sua execração antecipadamente, irá preparar uma roupa ou frase para a ocasião? Todos eles sonham com William Bonner pronunciando vagarosamente seus nomes, naquela silabação moralizadora, a voz barítona, todos na sala.
O Supremo Juiz disse o que seus admiradores esperavam? Os jornais irão estampar a manchete esperada? Os lobos terão sua cota de carne humana fresca, como sempre tiveram? Para apimentar, uma notícia sobre alguma conjugalidade traída virá de brinde?
Quando ele se adianta, que abalos provoca? Quando aquele que dá a última palavra manda os escrúpulos às favas, como tanto já se mandou nesse imenso e continental hospício, profere a primeira, o que ocorrerá? Que teoria da conspiração se alimentará? Foi um recado para alguém, tão importante que fez o Ministro dar a primeira palavra? Tão bacana que mereceu ser avisado antes. Alguém dormiu tranquilo, outros vararam a noite, incrédulos diante da punição que sofreram.