O diabão
Até Xangô perde humor quando se tenta salvar mito
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Viver é muito perigoso, ensinou Guimarães Rosa, e ser um orixá também não é fácil. No Orum, o plano em que vivem as divindades do candomblé, a expectativa era geral: todos aguardavam o pronunciamento de Iansã e Xangô, regentes de 2025, sobre o que esperar neste ano.
– Vamos, Iansã, temos de chegar a um acordo. Os outros deuses e os mortais dependem do que vamos dizer – insistiu Xangô, senhor do fogo e da justiça.
– Sei disso, Xangô, mas não tá fácil – declarou a rainha dos raios e das tempestades. – Cê sabe, sou a senhora dos ventos, mas eles parecem ter adquirido autonomia, castigam todos os continentes.
– Então podemos concordar que 2025 será um ano difícil, em termos ambientais, em boa parte devido ao descaso dos homens com seu próprio planeta? E quanto à política? E quanto à busca de justiça, que é minha praia, e à continuidade das guerras?
– Ah, quanto a isso não dá pra prever quase nada – admitiu Iansã. – E me recuso a fazer declarações cheias de boas intenções, mas sem efeitos práticos, no estilo das resoluções aprovadas pelas Nações Unidas.
O deus da justiça sorriu, meio sem graça. Pelo jeito, seu atributo não estaria muito em voga, no ano que se iniciava.
Enquanto a discussão prosseguia, sentiu-se no salão principal do Orum, onde os dois se encontravam, um forte cheiro de enxofre. Logo em seguida, materializou-se um demônio feio pra dedéu, com o corpo coberto de espinhas.
– Saudações, divindades – declarou o recém-chegado. – Gostaria de me reunir com meus primos exus, que…
– Não são seus primos – cortou Xangô, em um tom severo. – Exus do candomblé são orixás mensageiros dos demais deuses.
– E a encarnação do princípio vital de cada ser vivo – complementou Iansã. – Mas não dos demônios. Não há exus no inferno! – concluiu a senhora das nuvens de chumbo.
Percebendo que Iansã, mais impetuosa que ele, estava a ponto de cobrir de pau o diabão, Xangô enviou uma mensagem telepática, solicitando a presença de Oxalá, o maior dos orixás, e dos principais exus. Todos se materializaram de imediato no local.
– Fale o que deseja e vá embora. Consideraremos a súplica vinda do inferno – declarou Oxalá, provocador.
– Gos…gostaríamos de pedir um ebó pra lá de elaborado – gaguejou o demônio, intimidado –, para termos o apoio de todos os orixás e exus em nosso favor.
– Para quê? – perguntou o orixá supremo.
– Pa…para evitar a prisão de um dos nossos. Bom, ainda não é, mas logo vai ser. Por enquanto, ele vive no que vocês chamam de Aiyê, o plano dos homens.
– E quem é ele? – perguntaram a um só tempo Oxalá e Xangô, com um sorriso discreto. Sabiam de quem se tratava, e estavam adorando ver o desconforto do diabão.
– Ele é chamado de Mito, e muitos adversários seus o chamam de Bozo. Recebi instruções para nunca pronunciar seu nome – admitiu o demônio.
– Mito ou Bozo, tanto faz – observou Oxalá. – Futuro demônio, é? Não era ele que dizia sempre “Deus acima de todos?”
– Era sim – admitiu a contragosto o emissário de Satanás. – Fazia isso para enganar os imbecis que o apoiavam.
– Não eram os partidários dele que destruíam templos de candomblé e umbanda? – indagou Iansã, em um tom suave e perigoso.
– Não todos, só os mais fanáticos – tentou justificar o chifrudo/rabudo.
– E por que o levam aos tribunais? – indagou o senhor da justiça.
– A lista é longa, vai da apropriação de joias ao incentivo a uma tentativa de golpe de Estado. Ah, sim, tem ainda o planejamento do assassinato do presidente e vice-presidente eleitos no Brasil e de um ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Xangô, o justiceiro, explodiu.
– Absurdo! Pedem ao senhor da justiça uma oferenda pra ajudar um criminoso que já devia estar das grades a escapar da lei? É bom que ele vá pra cadeia e depois para o inferno!
Apavorado com a palavras cheias de ira de um orixá normalmente ponderado, o diabo não se persignou, demônios nunca o fazem; mas foi como se.
– A súplica de Satanás não será atendida – decidiu Oxalá, com voz imperiosa.
O demônio assentiu em silêncio. Mas antes de regressar às profundezas, observou:
– Uma pena vocês não terem aceito a oferenda ritual. Mas temos um último recurso para salvar o Mito: pedir a intervenção do presidente-diabão dos Estados Unidos. É perigoso, ele é louco de pedra, mas devemos proteger os nossos!
E se desmaterializou em uma nuvem de enxofre.
