O nome dele era Everardo. Era um escritor-vendedor. Dois motivos para ser conhecido como EV. Era um escritor razoável e um vendedor super dedicado, em merchandising permanente de seus livros. E a volúpia de vendê-los estava asfixiando seu talento. Quando EV terminava um conto, por exemplo, não o relia com um sorriso, nem ria alto de certas passagens. Tampouco o enviava para os amigos, ou o postava nos grupos literários de que participava. Em vez disso contava o número de páginas e pensava coisas assim: “Três páginas…ótimo! Escrevo mais 47 e posso lançar outro livro. Impresso, que dá muito mais grana que e-book”.
Quando os amigos, cheios de dedos, observavam que não liam mais textos seus, apenas propaganda de seus livros já escritos, EV franzia o cenho, carrancudo, e respondia com rispidez:
– Muito trabalho. Não sou um amador que nem vocês, sou um escritor profissional. Comprem meus livros quando forem lançados, vocês vão encontrar textos originais. E agora, parem de encher o saco!
Ao mesmo tempo, pensava: “Esses filhinhos de papai não sabem o que é lutar pela vida…Venho de família pobre, mas tenho certeza de que enriquecerei com os meus livros!”
Notem que EV jamais pensava “enriquecerei graças ao meu talento” ou sequer “enriquecerei com os meus escritos”. Talento e escritos são precificáveis apenas num contexto de mercado; ele preferia pensar em livros, objetos que sempre o encantaram. E que podiam ser vendidos em saraus literários, presenteados a mulheres – mecenas decrépitas que o financiavam em troca de favores sexuais, que não eram bobas –, enviados a editores que ele queria seduzir para ser publicado, comercializados a preço de banana junto a sebos, em tempos bicudos…
EV não sabia, mas escritores muito melhores que ele haviam enfrentado o mesmo problema. E se dado muito mal.
Certa noite, depois de haver escrito mais um conto (“apenas duas páginas, que chato, ainda faltam 45 pra eu lançar meu livro”), EV, semi-adormecido, escutou uma voz que o xingava:
– EV, escritor de merde! Acorda, filho da pute!
Acordou e deparou-se com uma aparição conhecida: um homem de meia idade, de aparência bem burguesa, gordinho, de bigode, vestido com uma espécie de guarda-pó ou capa protetora. EV o reconheceu de imediato e descartou o medo, bem como sua indignação com os xingamentos:
– Mestre Honoré de Balzac! Quanta honra!
– Qual honneur, débile. Fui mandado aqui para convencê-lo a mudar de vida enquanto é temps.
Balzac se expressava numa geleia geral de francês e português, mudando muitas vezes as terminações das palavras portuguesas, mas EV, mesmo sem falar patavina, un seul mot de francês, conseguia entendê-lo.
– Mestre, estou lisonjeado com a visita, mas mudar de vida?
– Imbécile! Você tem talent, se não eu não teria vindo aqui. Vim dizer que você está desperdiçando sua criatividade, preocupando-se em vender livres e nada mais. Vim contar o que se passou com um escritor muito mais talentoso que você, que se deu mal devido a esse tipo de problème.
– Quem, mestre? – indagou EV num tom despeitado. Ele se achava o rei da cocada preta das letras brasileiras de sua geração.
– Eu, claro! – explodiu Balzac. – Por isso fui mandado aqui. Você deve conhecer a Comédie Humaine (EV fez que sim com a cabeça). É magnifique, mas podia ser muito melhor se eu não tivesse escrito alguns romances e contos nas coxas. Sempre pressionado pelos editores. Eles me enrabaram mil vezes.
– Foi mesmo, mestre?
– Metaforicamente, espèce de con! Sou espade, gosto de mulheres, de femmes! – Balzac tomou fôlego e prosseguiu:
– Eu queria enriquecer, assim como você. E ser o maior escritor de mon temps. Consegui a segunda parte, mas fiz negócios desastrosos, que me deixaram nas garras dos editores. Aí sacrifiquei a qualidade para cumprir prazos absurdos e ser pago, tinha muitas dívidas. E eles não perdoam isso.
– Eles quem, mestre?
– Os membros da Academia literária do plan spirituel (ALPS). Todo escritor participa depois de morrer. A direção não exige talent, seria injusto com a esmagadora maioria; mas cobra dedicação plena, a entrega total dos que pretendem fazer littérature, a exploração integral da criatividade de cada um. Veja bem, poètes e contistes amadores não fazem parte das fileiras. Mas romancistas fazem, e você já escreveu dois romances.
– Gostou do meus romances, mestre? – perguntou EV, embarcando numa egotrip. – Estão vendendo direitinho. Se tudo correr bem…
-Imbécile! – cortou Balzac, exasperado. – Já expliquei que sua sofreguidon em vender vai acabar com sua carreira. Já contei que fiz parecido com você, e como pénitence tive de convencer dezenas de escritores fraudulents a serem mais dedicados. Você é minha última mission; se convencê-lo a fazer boa literatura, em vez de tentar apenas vender livres, vou fazer parte da direção da ALPS.
Mas EV já não o ouvia. Uma ideia recheada de cifrões havia tomado conta de sua cabecinha.
– Por que não fazemos uma parceria? – perguntou abruptamente. – Frequento uma mesa branca kardecista na minha cidade. Você baixa por lá e psicografo seus escritos – ou finjo que psicografo, tanto faz, você sabe que escrevo bem –, e assinamos Honoré de Balzac e Everardo Macieira.
EV respirou fundo e iniciou a parte espinhosa da negociação.
– Mas você tem de me deixar ficar com o dinheiro, afinal você está morto, não precisa de grana, e eu preciso muito – os olhos de EV brilharam. – Olha, seria ótimo se você deixasse uma mensagem psicografada com outro médium, declarando que ia trabalhar comigo e que abria mão de seus direitos autorais em meu favor. Aí…
– Babaque! Espèce de con! – cortou Balzac. Em seguida balançou a cabeça, desiludido. “Missão fracassada, mais pénitence a cumprir. Merde, alors!”, pensou. E se desmaterializou.
EV ficou meio aturdido, sentiu-se culpado por alguns minutos, mas depois deu de ombros.
– Balzac nunca teve boa cabeça pra negócios. – disse em voz alta. – Não foi por acaso que fracassou em tantos projetos comerciais. Já eu, além de bom escritor, sou um empreendedor brilhante!
E foi dormir, que nos dias seguintes havia muitas páginas a preencher, até completar as 50 de mais um livro.