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Baseados e literatura de terror não combinam em nada

Marcos estava fumado, estava lendo um conto de Lovecraft e estava morrendo de medo.

O conto era “O que sussurrava nas trevas”, publicado em 1928, uma das obras-primas do mestre norte-americano do horror. Fosse pelo efeito da erva, de sua fértil imaginação ou pela magia das palavras do bruxo de Rhode Island, ele vivenciava cada cena; visualizava os seres que pareciam saltar das páginas do Necronomicon, o livro maldito sempre citado por H. P. Lovecraft; ouvia cada diálogo entre os protagonistas de carne e osso e os alienígenas que sussurravam em tons sibilantes.

O vento frio que entrava zunindo pela janela do apartamento, no último andar do edifício, reforçava a sensação de pavor, parecia levar até ele vozes murmurantes e inumanas. Marcos era um homem de 25 anos, sofisticado, de boa formação cultural; sabia que entidades monstruosas ou demoníacas não existem – mas isso não o impedia de tremer da cabeça aos pés.

Por volta das 2 da madrugada, ele escutou batidas leves na porta. – É o vento – disse em voz alta, tentando infrutiferamente tranquilizar-se. O som logo cessou; em seguida, porém, ele ouviu (ou julgou ouvir) uma voz que o chamava:

– Marcoss…Marcoss…

Era um som horrível, alheio a qualquer emoção humana. E o que o tornava ainda mais apavorante não eram os ss sibilantes, como o silvo de uma serpente, e sim a tentativa desajeitada de associar a ele uma dimensão de cordialidade e afeto, como se fossem palavras de um velho amigo que faz uma visita.

Ele, evidentemente, não abriu a porta. Em vez disso largou o livro na sala e correu para o quarto, acendeu a luz e deitou-se. Depois tentou dormir, mas não conseguiu. Rolou na cama até as 6 da manhã, quando finalmente desmaiou, em meio a uma sucessão de pesadelos por sorte logo esquecidos.

Acordou às 9, com o rosto amarrotado e um gosto amargo na boca. Tomou um banho rápido, preparou um café, engoliu-o, abriu a porta – tremendo nas bases – para pegar o jornal que o porteiro do edifício entregava bem cedo. Em seguida sentou-se no sofá, estremeceu ao ver o livro caído por terra, tratou de varrê-lo de seus pensamentos e procurou se concentrar nas notícias. Mas não conseguiu: os eventos da madrugada retornavam. Por sorte, era dia claro, e a luminosidade e sua capacidade de racionalização os neutralizavam parcialmente.

– Porra meu, um béque e Lovecraft juntos dão o maior bode – disse para si mesmo, com uma careta, arremedo de sorriso.

Lá pelas 10, soou a campainha. Abriu a porta cautelosamente. Era Joana, uma moradora do prédio, também jornalista, com quem já havia transado umas duas vezes.

-Bom dia Marcos – disse a moça com um fio de voz. – Posso entrar?

– Claro, querida.

Os dois sentaram-se no sofá e começaram a conversar. Após um certo tempo ela falou:

– Ontem bem tarde fiz uma visitinha. Estava com saudades… – disse com um sorriso entre tímido e malicioso.

O alívio tomou conta de Marcos. Então era ela, não um dos monstros do Necronomicon! Procurou certificar-se, para descartar de vez o medo.

– Você bateu bem de leve e não tocou a campainha, não foi?

– Isso, bati e não toquei, já era tarde e fiquei meio sem graça…

– E me chamou bem baixinho, não foi? – era a confirmação final para mandar os monstros de Lovecraft para o inferno.

– Não, não chamei – a negativa de Joana fez desabar o castelo de alívio recém-construído por Marcos. – Está ouvindo minha voz? Hoje de madrugada eu não conseguia falar uma só palavra. Não tinha como chamar você.

– Não, você deve ter falado e não lembra – ele racionalizou. – Ouvi alguma coisa lá pelas duas da madrugada e…

-Às duas? – cortou Joana. – Passei à meia-noite e achei tarde. Bati de leve, não toquei a campainha e, como você não respondeu de imediato, fui pra casa – notando a súbita palidez dele, perguntou:

– Aconteceu alguma coisa, querido? Me conta.

Marcos não respondeu. Alegou uma forte dor de cabeça e praticamente empurrou a desapontada amiga colorida para fora do apartamento. Depois começou a pensar. Ele sabia que vampiros (que não existem!, disse para si mesmo) precisam da autorização do dono de uma casa para entrar. Talvez os monstros de Lovecraft (que não existem!, repetiu) fossem semelhantes. Nesse caso…

Seu celular soou. Marcos atendeu. Já sabia quem estava ligando.

– Marcoss, você pertence a nóss! Se noss deixar entrar no apartamento, vai doer menoss…Se não, o pegamoss na rua… – e o ser que ele jamais havia visto (mas logo veria) desligou.

Sentado no sofá, a cabeça entre as mãos, Marcos espera que anoiteça, e que tenha início o último lance de sua história de terror.

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