Professores, médicos, padres, garçons, benzedeiras, feirantes, gorozeiros, lavadores de carro, padeiros, barbeiros e até coveiros fazem parte da lista de figuras que, amados por uns e odiados por outros, não se esgotam nunca. Melhoral era o bêbado doidão do meu bairro no subúrbio do Rio de Janeiro. Querido pela maioria, quase foi trucidado pelo dono do sobrado e da farmácia de marquise de zinco sob a qual o inofensivo transeunte dormia. Certa feita, madrugada alta, mamado até a alma, Melhoral bateu seguidamente na porta de aço do estabelecimento. Morador do andar de cima, nada tão complicado para seu Ludgero abrir a loja para atender um “vizinho” adoentado.
O problema é que, após colocar o jaleco de serviço, o farmacêutico deu de cara com o tal bebum querendo apenas se pesar. É óbvio que a fúria de seu Ludgero recebeu o aval de todos os lojistas da região. Desajeitado de berço, mas lindo graças à natureza brincalhona, João do Fusca era vendedor de hortifrutas, galinhas, tomates e ovos frescos. No bairro, não há um (ou uma) que nunca tenha provado ou apertado seu rabanete, sua cenoura, seus ovos, tomates ou o pepino que sempre levava escondido no fundo do carrinho. As carambolas, seriguelas e os mamões papaias ficavam mais expostos. A estratégia era simples: evitar que toques mais robustos das madames da periferia deixassem os ovos e os tomates meio bambos.
Tocador de trombone de vara nas horas vagas, seu João era um homem simples, mas ficou marcado por um trágico acidente até hoje mal interpretado pelos contadores de história. João era maestro da bandinha da Igreja Matriz, localizada na área mais íngreme do bairro servido por ônibus do tipo jardineira. Ao participar de uma das procissões em homenagem ao Senhor Morto, ele não viu a condução descendo a ladeira sem freio. Em um embargo auricular meio truncado, foi informado pelo coroinha do trágico sucedido. Como entendeu mal, sinalizou para os companheiros da banda, deu o primeiro acorde e tascou Jardineira, a canção de maior sucesso do saudoso Orlando Silva.
Entre mortos e feridos, salvou-se apenas padre Ambrósio, o mesmo que, pouco tempo depois, recebeu diploma de reconhecimento de um circo mambembe que estava afixado em uma praça do bairro. Por isso, acabou excomungado pelas beatas mais senhorinhas. O problema ocorreu em um dia em que o enviado de Francisco estava no confessionário atendendo os paroquianos, quando avistou um rapaz que não conhecia. Era o acrobata do circo. Surpreso e neófito no tema, padre Ambrósio pediu para que o moço fizesse uma demonstração. Terminada a confissão, o jovem deixou o confessionário dando cambalhotas e plantando bananeiras.
Na fila das confissões, duas velhinhas se entreolharam e uma disse para a outra: “Comadre, vamos embora rápido. A penitência hoje é complicada e eu estou sem calcinha”. Para evitar queda drástica na arrecadação da igreja, padre Ambrósio foi transferido para o interior do Estado. Entre as figuras que não se acabam, Valdir, o primogênito da família dos Schneider, era o supervisor geral dos coveiros do cemitério local. Frequentador de currutelas, Didi Linguição nunca enterrou ninguém, mas era conhecido de todos na vizinhança. Sem estatísticas sobre os companheiros que já havia visto sendo literalmente enterrados, Didi criou um macabro bordão que até hoje é marca registrada de sua longa e feliz vida: “Quem é vivo sempre aparece”.
As bizarrices são das mais diversas. Dona Odete, a benzedeira de novos e velhos, me ensinou que pouco sexo atrapalha a memória. Por causa dela, nunca mais esqueci a fórmula da Cibalena (Dimetilaminofenilpirazolona). Lavador de carro e dos melhores garçons nas horas de folga, Dezinho do Boga quase morreu no fim de uma festa de casamento na quadra de ensaios do Solta o Bicho, bloco carnavalesco do bairro. Comes e bebes já quase fartando, Dezinho todo fantasiado e de gravata borboleta, eis que alguém gritou: “Todos os homens casados, por favor, fiquem ao lado da pessoa que tem feito sua vida valer a pena”. Dezinho por pouco não perdeu o boga e foi esmagado na confusão. Dizem que Dezinho foi quem inspirou Reginaldo Rossi, o conde do Brega, na canção Garçom. No balançar dos ovos, de médico, padre, bêbado e louco todos temos um pouco.