O licor e o pastor
Bebida de casca mastigada, de uso privativo, desce pela goela errada
Publicado
em
Quem chega aqui em casa encontra, ao abrir o portão, um frondoso pé de jabuticaba adornando o pequeno jardim, que só não fica mais bonito porque as patas do Alfredo não deixam.
Às vezes passo tempo contemplando a jabuticabeira e lembrando da infância. Vó Odete cultivava uma no fundo do quintal onde eu sempre brincava. A cada safra, filhos e netos devoravam tudo, ali mesmo no pé.
– Não engula o caroço – advertia a vovó.
– Ou coma a casca.
Dicas valiosas para que o banquete não entupisse as tripas. Algumas vezes não segui direitinho e me dei mal. Quem nunca?
Vó Odete aproveitava as frutas boas que caíam espontaneamente para fazer um delicioso licor, sempre servido a quem a visitava.
Numa garrafa à parte e que normalmente ficava escondida, ela guardava seu licor privativo. Não era servido a ninguém, pois feito com as cascas que ela mesma havia degustado. Só os familiares sabiam.
Reza a lenda que, certo dia, o pastor da igreja lhe fez visita inesperada, sentou-se à mesa e ficou encantado com a garrafa do licor de jabuticabas chupadas, deixada ali por descuido.
– O que é isso aqui, irmã?
– Licor de fruta.
Foi a resposta genérica que ela arrumou para não cometer o pecado da mentira e, ao mesmo tempo, não revelar a matéria-prima.
– Eu quero – entusiasmou-se o pastor.
Desconcertada e sem alternativa, vó Odete teria servido a bebida e recebido elogio pelo sabor especial. Ela negou o fato até subir ao céu, mas se divertia quando eu contava a história em rodas de conversa.
Com saudades dela, cultivo o pé de jabuticaba aqui de casa e aproveito todas as safras para também preparar o nosso licor. Mas só com jabuticaba nova, fiquem tranquilos os visitantes.
…………………..
Instagram: @certascronicas
