Luiz Carlos Merten
Há algo de belo e misterioso em Beduíno, como em todo filme de Júlio Bressane, mas há algo de especial neste que, de certa forma, pode ser considerado uma súmula do autor. Bressane apresentou Beduíno no Festival de Brasília do ano passado. Há 50 anos, ele iniciava, em Brasília, sua singular trajetória com Cara a Cara. Na apresentação do novo filme, Bressane convidou o público a se libertar de prejulgamentos e curtir alguma coisa “tão fora do habitual a que está acostumado a se nutrir”. É uma espécie de jogo. Lúdico e inteligente, talvez exigente, mas menos complicado do que outros filmes por ele realizados.
Em cena, dois atores perfeitamente integrados ao universo bressaniano – Alessandra Negrini e Fernando Eiras. Formam um casal não convencional, claro, e, antes mesmo que entrem em cena, o filme abre-se com um cartão colocado em frente à câmera, simulando um buraco de fechadura. Nós, o público, somos convidados a entrar na intimidade. Do casal? Não, de uma filmagem. Beduíno adota a forma do filme dentro do filme. Na verdade, vai além e faz um inventário de criações passadas no cinema do autor.
Em 1971, ele fez, em seu exílio na Inglaterra, um filme chamado Memórias de um Estrangulador de Loiras, em que Guará Rodrigues comete uma série de assassinatos (de loiras, naturalmente) no ambiente insuspeito de um parque de Londres. O estrangulador volta agora por meio de Eiras, que faz um escritor e imagina a história. Alessandra e ele imaginam muita coisa em cena. Liberam corpos e instintos num verdadeiro teatro de luz. Um trenzinho elétrico viaja pelo corpo escultural da atriz. Sua nudez é posada, e há até uma simulação de batalha, que extrapola o sexo, entre os dois. Guerra mesmo.
Nada é realista. Tudo pertence ao universo da representação. “O cinema é um organismo que atravessa todas as artes, todas as ciências, atravessa a vida”, Bressane diz. “Não pode ficar amarrado a esse gosto médio dominante.” No limite, Beduíno é sobre o cinema como mídia. Evoca os pioneiros, revisita os velhos ateliês de pintura – quando havia pintura, Bressane provoca, e o quadro era feito por muitas mãos. Nessa busca por uma nova realidade – “evocação à imaginação, à ficção, à memória, aos sonhos, à poesia, à música” -, violado o buraco da fechadura, Alessandra e Eiras, na liberdade de suas encenações, viram a própria imagem de Beduíno.