A gripezinha já atingiu 14 milhões de brasileiros, transformando em números quase 390 mil desses cidadãos. Desde o início do governo Bolsonaro, o país contabiliza 13,4 milhões de desempregados e 27 milhões de nativos vivendo abaixo da linha da pobreza. A classe média encolheu dezenas de centímetros e a taxa de desmatamento da maior floresta tropical do mundo em 2020, de 11.088 km², é 70% maior do que a média da década anterior (6,5mil km²). Pior é que essas queimadas foram responsáveis por 72% das emissões do Brasil em 2019. Nada disso é fantasia. São dados reais, alguns disponibilizados pela própria administração pública. Entretanto, poucos são os parlamentares, técnicos ou eleitores ligados ao presidente da República incomodados com a situação. Passam a impressão de uma estratégia que objetiva destruir ou desqualificar o que funciona, consequentemente chama atenção do planeta.
O descaso com o meio ambiente e a tentativa de minar a credibilidade do sistema eletrônico de votação são os maiores exemplos dessa afirmação. Deputada de primeiro mandato e ligada umbilicalmente ao capitão, Bia Kicis (PSL-DF) ainda não mostrou trabalho parlamentar desvinculado. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, claudica no comando e patina nos desmandos. Entre os projetos ideológicos de sua autoria (nenhum aprovado), destacam-se os que revoga a PEC da Bengala (75 anos para aposentadoria de servidores públicos, inclusive ministros do Supremo Tribunal e tribunais superiores) e o uso obrigatório de máscaras, torna a vacinação facultativa, tipifica como crime a apologia ao comunismo, cria mecanismos para impeachment de autoridades do STF e do Ministério Público e, o principal, que tenta recuperar o voto impresso.
Para depreciar a urna eletrônica, um bem inalienável e institucional do povo brasileiro, a deputada ativista protagoniza lives semanais, nas quais apresenta mais do mesmo e repete para interlocutores escolhidos a dedo argumentos superados e amplamente desmentidos sobre a segurança do sistema eleitoral. Usual e sem respaldo na lei, a alegação mais utilizada lembra uma fábula. Com discursos combinados previamente, senadores, deputados, jornalistas e técnicos insistem na tese de que, sem impressão de sufrágios, as eleições brasileiras serão sempre fraudáveis. Virou mantra a necessidade de auditar as urnas eletrônicas e recontar votos como metodologia mais transparente. Apesar da disponibilidade de servidores da Justiça Eleitoral ou de técnicos capazes de excluir questões ideológicas da discussão, as lives lideradas pela deputada brasiliense são absolutamente unilaterais.
Sem o contraponto de quem conhece o mecanismo dos equipamentos, fica difícil convencer os seguidores do bolsonarismo de que a recontagem de votos não só é possível como está disponível para qualquer partido. Basta requerê-la formalmente. O que a lei não permite é o que se pretende com a emenda constitucional protocolada pela parlamentar: a identificação do voto de cada eleitor. A cada eleição, ministros e técnicos da Justiça Eleitoral detalham diariamente o funcionamento do sistema, lembrando que todas as urnas gravam os votos nela registrados em um arquivo denominado Registro Digital do Voto. Trata-se de uma planilha que compila 100% dos dados digitados e que, no fim da votação, é assinada digitalmente com o código específico de cada uma das 450 mil máquinas. Então, por que tanto temor com a segurança da urna eletrônica?
Parece elementar, mas nenhum dos participantes das lives até hoje foi capaz de lembrar – e divulgar – que o equipamento, genuinamente nacional, foi projetado para operar como dispositivo isolado, isto é, sem ligação com internet, bluetooth ou redes, consequentemente com chance zero de invasão. Na prática, as lives são espaços para desinformações, críticas sem provas e púlpito para ataques à mídia, partidos de esquerda, às “máfias” do TSE e do STF e à lisura do processo eleitoral. Até a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump já mereceu questionamentos dos debatedores. Nunca disseram, por exemplo, que, por conta da falta de provas sobre dúvidas do voto eletrônico, Trump, seu advogado e a rede de TV Fox News foram processados pela empresa canadense de tecnologia Dominion.
Denominada de “Voto impresso auditável, quem tem medo da transparência eleitoral?”, as lives também poderiam ser alcunhadas de “A quem interessa o voto impresso?”. Entusiasta da ideia, Bolsonaro, em uma dessas lives, afirmou que as eleições de 2018 foram fraudadas. Obviamente não lembrou – porque não interessava – que foi ele o vencedor. Então… O fato é que a judicialização de resultados eleitorais só interessa a derrotados. Donald Trump tentou e perdeu duas vezes: nas urnas e nos tribunais. Interessante reiterar que, entre os participantes da última live de Bia Kicis, nenhum antagonista. Apenas os de sempre, com destaque para Sérgio Angelini, CEO da empresa MSA, responsável pelo sistema eletrônico argentino de votação.
Utilizada desde 2015 em Buenos Aires e na província de Salto, a tela do equipamento portenho permite ao eleitor selecionar o nome do candidato e imprimir uma cédula, que, em seguida é dobrada e inserida na máquina. A urna não grava nenhum tipo de dado. Segundo o governo, o sistema impede a multiplicidade e o furto de cédulas. Pode ser. Mas, como há manuseio humano, quem garante que a tal cédula será mesmo depositada na máquina? Vale ressaltar que o Brasil não usa cédulas faz 20 anos e que suas urnas, aprovadas pelos argentinos em 2004, nas eleições de La Plata, gravam do espirro ao ódio dos candidatos.