Notibras

Bicho bom é dinheiro; se bem contado, melhor ainda

O ano era 1987, quando trabalhava como caixa num banco particular. Uma merreca de salário, mas era o que tinha na época. Foi num domingo, final de junho, pouco depois de completar 19 anos, que abri as páginas dos classificados do jornal. Lá estava, bem no canto inferior, um pequeno anúncio: Firma respeitável procura contador. Na época, eu mal havia concluído o segundo grau, hoje chamado de ensino médio. Todavia, como a grana estava cada vez mais curta no final do mês, quis arriscar. Afinal, o que teria a perder? No máximo, uma porta na cara.

No dia seguinte, telefonei para o número indicado e, então, consegui marcar um encontro para aquela mesma manhã. Por sorte, o endereço era bem perto do meu trabalho. Tratei logo de me arrumar para o serviço, pois a minha intenção era ir direto para o banco assim que a entrevista de emprego terminasse.

Logo que cheguei ao local, não consegui encontrar a entrada, até que fui abordado por um cara enorme e com cara de poucos amigos, isto é, se ele tivesse algum. Ele tocou meu ombro e me lançou aquele olhar que lutadores de boxe fazem antes da luta.

— Manoel?

— Sim.

— Me acompanhe.

Segui o tal brutamontes, que me levou para o lado de trás do prédio. Ele estacou diante de uma velha porta esverdeada. Olhou para os lados por alguns segundos, até que, finalmente, a abriu e quase me empurrou para dentro. Tive que apoiar as duas mãos nas paredes enquanto subia uma escada tão íngreme, que imaginei que acabaria desabando sobre aquele troglodita, que vinha logo atrás.

Depois de subirmos três andares, entramos num corredor praticamente escuro, caso não fosse a iluminação natural que entrava por uma pequena janela ao lado tipo basculante. Entramos no pequeno apartamento ao fundo, onde estava o homem com quem eu havia conversado por telefone naquela mesma manhã.

— Manoel?

— Sim, sou eu.

— Sou o Jorge. A gente se falou mais cedo.

Ele me estendeu a mão e nos cumprimentamos. Em seguida, Jorge se virou pa-ra o grandalhão e, com um gesto de cabeça, o mandou sair. Somente após algumas semanas, eu saberia seu nome: Bruno. No entanto, todos o chamavam de Pequeno.

Por sorte, Jorge não me fez qualquer questionamento sobre a minha formação, pois eu teria apenas o meu diploma do segundo grau para lhe apresentar. Ele me perguntou se eu era bom em matemática e, então, pela primeira vez me senti confortável, pois além do meu nome, era a segunda verdade que havia dito naquela manhã.

— Sou.

— Tá vendo aqueles cadernos e papéis naquela mesa? Quero que você some tudo.

— Agora?

— Sim. Tem uma calculadora ali.

— Mas é que preciso ir trabalhar daqui a pouco.

— Quanto você ganha nesse seu trabalho?

Antes que eu pudesse responder, Jorge colocou um maço de notas graúdas no bolso da minha camisa. Nem precisei contar para saber que ali havia mais dinheiro do que o meu salário de dois meses inteiros.

— Posso usar o telefone?

— Vai ligar pra quem?

— Pro meu chefe.

Jorge me olhou com desconfiança, mas, em seguida, apenas me fez um sinal em direção ao telefone de cor laranja sobre a mesa. Liguei para o gerente do banco onde trabalhava.

— Danilo?

— Sim. Quem é?

— É o Manoel.

— Diga lá! O que você quer?

— É que acordei com uma diarreia daquelas. Não vai dar para eu ir trabalhar hoje. Tem como quebrar essa pra mim?

— Fazer o quê? Vou dar um jeito por aqui. Melhor que te ver com as calças borradas. Ia acabar espantando os clientes.

Não sei se Jorge ouviu as gargalhadas do Danilo, mas tratei logo de desligar o telefone. Em seguida, peguei a calculadora e a coloquei sobre a mesa. Conectei o fio à tomada ao lado. Puxei uma cadeira e me sentei diante daquele monte de anotações, todas feitas à caneta.

O serviço, apesar de trabalhoso, era apenas somar, e meus dedos eram ligeiros, graças aos seis meses como bancário. Tudo estava anotado em cadernos e inúmeros papéis recortados. Na época, certamente por ingenuidade, não entendi como é que uma empresa que movimentava tanta grana ainda usava algo tão rudimentar, quando as máquinas de escrever, hoje peças de museu, eram tão comuns há décadas.

Perto do meio-dia, com mais da metade das somas feitas, Jorge, sentado em uma cadeira ao fundo, me perguntou se eu preferia carne ou frango. Levei um tempo para entender a pergunta, até que percebi que ele estava falando sobre almoço.

— Frango.

Ele abriu a porta e saiu. Não tardou e voltou com duas marmitas e um litro de refrigerante. Entrou na pequena cozinha ao lado, onde havia uma mesa redonda, forrada com uma toalha quadriculada.

— Manoel, vem comer!

Almoçamos em silêncio e, em seguida, retornei aos cálculos. Levei mais duas horas para terminar. Jorge, percebendo que o barulho da máquina havia cessado, levantou-se e veio até mim.

— Acabou?

— Sim.

— Você é bom.

Ele foi em direção à porta e, não tardou, nos despedimos. O corredor estava ainda mais escuro, pois a posição do Sol havia mudado. Mesmo assim, consegui tatear as paredes até que, finalmente, saí pela porta nos fundos do prédio. Passei pelo Pequeno e tive ímpeto de cumprimentá-lo, mas me faltou coragem. Fui para casa.

Duas semanas depois, enquanto atendia dezenas de pessoas no banco, eis que avistei um rosto familiar. Era Jorge, que carregava uma maleta. Ao seu lado, lá estava o Pequeno, com a característica cara de poucos amigos. Os dois me viram e nos cumprimentamos com acenos de cabeça.

A fila era enorme, mas percebi que os dois queriam ser atendidos por mim, pois Jorge deixou que outros dois clientes, logo atrás, lhe tomassem a frente. E, assim que chamei o próximo da fila, Jorge e Pequeno se postaram diante de mim. O primeiro me entregou a maleta. Enquanto eu contava todo aquele dinheiro, Jorge me disse que um dos pacotes era para mim.

— Não posso aceitar.

— Besteira! O Chefe gostou do seu serviço. Ele quer conversar com você ainda hoje.

— Que horas?

— Agora.

— Não posso, estou trabalhando.

— Besteira!

Depois de somar e fazer o depósito daquela dinheirama toda, entreguei o recibo para Jorge. Ele me encarou, e não tive dúvida. Fechei o caixa e aquele foi meu último momento como bancário. A partir de então, quando alguém me pergunta sobre meu trabalho, sempre respondo: “Ah, sou corretor zootécnico!”

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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