Só para estabelecer um parâmetro, em Brasília funciona uma feira chamada Dos Importados, mais conhecida como Feira do Paraguai, alusão à origem dos produtos nada originais vendidos por lá. Nela circulavam cerca de 10 mil consumidores por dia antes da pandemia, onde estão instalados 2 mil boxes que empregam cerca de 5 mil pessoas. O mesmo número de trabalhadores que a Ford deixará órfãos no Brasil.
A colocação sobre empregos indiretos comparativos nem cabe, talvez a feirinha ganhe em números de fornecedores e transportadores. Outros comparativos podem dar leve vantagem ao ilustre e centenário fabricante de automóveis, mas por enquanto só estamos falando de empregos, que foi o tema vociferado pela grande mídia como uma catástrofe. Entretanto, nesse quesito, os números são irrelevantes.
Há algumas décadas, com a automação da indústria automobilística, a instalação de uma planta do setor não representa grande coisa na geração de emprego e renda. Existe, sim, um fato a ser avaliado, de maior importância. Os EUA e seus conglomerados multinacionais privados são indissociáveis. O Estado enxerga a sua bandeira nos produtos de seus filhos e as fábricas carregam a bandeira do Estado em suas marcas. Assim é feita a ocupação territorial empresarial e comercial no planeta pelos estadunidenses.
Para maior compreensão, caso uma rede de lojas brasileiras, como exemplo uma fast food, pretenda avançar o mercado internacional, abrir lojas em outros países, o governo do Brasil não dará nenhuma importância e o empresário deverá empreender por sua conta e risco. O nosso Estado não tem a compreensão de que aquela marca conduz a nossa bandeira.
Essa forma simplista pretende apenas revelar que a decisão da Ford não seria tomada sem a anuência do governo dos EUA. É certo que Joe Biden foi informado e assinou embaixo. Aí, sim, é preocupante. Não é uma marca qualquer que deixa o país, nem parte da nossa história que será enterrada.
Mesmo fracassado em seu delírio tropical, Henry Ford, fundador da empresa, quando no início do Século XX criou um distrito chamado Fordlândia no município de Aveiro, no Pará, para produzir borracha a partir de seringueiras, nunca foi de desistir (a cidade tem hoje pouco mais de 1 mil habitantes). Mas desistiu de Fordlândia que só serviu para hospedar soldados compatriotas na Segunda Guerra. Nunca produziu um elástico para prender maços de dólares. O movimento feito pelo inventor da linha de produção só serviu para que os Europeus inaugurassem a biopirataria na Amazônia, quando contrabandearam milhares de sementes de seringueiras para concorrer com Ford. E ganharam.
Agora seus sucedâneos desistem do Brasil, no momento em que outras montadoras anunciam, com entusiasmo, modelos asiáticos dando relevância ao fato de que seus veículos são produzidos aqui. A incompetência da Ford é verificada no ranking dos veículos adquiridos em 2020: entre as dez marcas mais vendidas, um único modelo da fábrica aparece em 6º lugar, o horrendo Ka. Entre as caminhonetes, a Ranger aparece em um medíocre 4º lugar, perdendo de longe em unidades comercializadas para o Fiat Toro, Toyota Hilux e Chevrolet S10.
O capitão doidão tem razão. A Ford não fará a menor falta ao Brasil. O importante é entender a essência política da decisão. Tio Sam mexeu uma pedra do tabuleiro para sinalizar que o Brasil era amigo de Donald Trump, não dos EUA. A Argentina e o Uruguai, mercados desprezíveis, ao contrário, continuam brothers.
O recado bilateral foi dado. Um disse: “Se o Brasil não gosta dos EUA, vamos levar a bola porque o jogo é nosso.” O outro respondeu: “Se os EUA não gostam do Brasil, podem levar a bola, porque o campo é nosso.”
A decisão da montadora vai gerar duas consequências: ficará mais fácil – e seguro – escolher uma marca e modelo de automóvel a partir de agora; além disso, surge mais um segmento de admiradores da marca Ford: a dos colecionadores.