As coisas que acontecem aqui no bairro talvez sejam como as que ocorrem por aí ou em qualquer outro lugar. Se bem que acho difícil ter outra banca de jornal que nem a do Guimarães, vulgo Guima. Não que seja uma banca muito diferente das que conheço ou que já passei em frente. Por lá os jornais ficam pendurados ou em pilhas, assim como aquele monte de revistas, algumas com tarjas pretas para não espantar a freguesia ou, então, para atiçar outros tantos a mexerem nos bolsos e comprá-las por módicos reais.
O que torna o local especial é justamente o público. Aparece cada figura, que, não raro, me pergunto se um tipo ou outro não saiu da doentia imaginação de um roteirista desses filmes B. E, por conta dessas peculiaridades, o Guima não perdoa e sai colocando apelido em todo mundo.
Um deles é um velho quase gagá, que só conheço por Bin Laden. Não creio que ele seja um terrorista, mas a alcunha deve ser porque o cara é bem alto, magro e meio encurvado. Aliás, com essa curvatura toda, já até pensei em um apelido mais apropriado: Pipa. Se bem que alguém poderia supor que fosse por causa daqueles barris de conhaque ou outra bebida. Melhor Bin Laden mesmo.
Meio distraído, Bin Laden, não raro, esquece a carteira, o isqueiro ou o maço de cigarros na banca. Mas o que aconteceu anteontem não foi por causa de esquecimento, e sim por excesso de lembrança. É que o coroa, inocente, puro e besta, acabou se confundindo e pegou as chaves da banca.
Na hora, ninguém percebeu essa trapalhada. Foi só quando a noite adentrou a rua que o Guima se deu conta do ocorrido. Procura daqui, procura dali e até de acolá, ele começou a se desesperar. Como é que iria fechar o comércio e poder ir para o lar, doce lar sem precisar se preocupar com os ladrões da região? Foi aí que ele se lembrou que o local tem câmeras.
Após quase uma hora correndo a filmagem do dia, Guima se deparou com o Bin Laden pegando o chaveiro sobre o balcão e o colocando no bolso da calça de tergal. No entanto, o problema não estava resolvido. É que o Guima não sabia onde o velho morava. E agora?
Pensamento a mil, Guima se lembrou de algo que, era possível, poderia ser a ponta de uma investigação. É que ele tinha anotado no caderninho de devedores o número do telefone do Gavião. Desse modo, lá foi o Guima virar as páginas até que encontrou o tal número. Ligou e, após algumas tentativas frustradas, conseguiu falar com o cliente.
— Boa noite, Guima! Não sei onde o Bin Laden mora, mas acho que o Doutor Pocotó sabe.
— Tem o telefone dele?
— Não tenho, mas sei que ele mora na rua da Forca. Só não sei o número.
— Valeu! Vou dar meus pulos.
Sem melhores alternativas, lá foi o Guima para a tal rua. Precavido que era, antes pegou o Zé Boião, antigo freguês, que passava naquela hora em frente à banca.
— Zé Boião, preciso da sua ajuda. Toma conta da banca, pois tenho que achar o Bin Laden. Ele pegou as minhas chaves.
Guima ligou a lambreta e cometeu todas as infrações possíveis no trânsito caótico de Salvador. Chegou ao local, mas precisava descobrir onde é que o Doutor Pocotó morava. Perguntou para inúmeras pessoas que caminhavam, até que uma senhora, cuja aparência lembrava a da Dona Canô, indicou um local.
— Moço, não conheço nenhum Doutor Pocotó, mas, pelas características, deve ser o seu Gumercindo. Ele mora ali naquela casa da esquina.
E lá foi o Guima tocar a campainha da tal residência. Não demorou, um homem gordo e careca abriu a porta. Era o Doutor Pocotó, ou melhor, o seu Gumercindo. Por sorte, ele sabia onde Bin Laden residia: rua do Paraíso, que ficava ali perto.
De volta para a lambreta envenenada, Guima não demorou a estacionar em frente à casa do Bin Laden. Este, envergonhado pelo transtorno causado, entregou as chaves para o dono da banca, que teve que recusar o prolongamento da prosa, pois precisava liberar o Zé Boião.
Guima acelerou ainda mais a lambreta e, já na esquina, percebeu que o Zé Boião estava sentado na cadeira em frente à banca, latinha de cerveja numa das mãos, pacote de salgadinhos na outra. O dono da banca não teve como reclamar pelo prejuízo causado pelo vigilante de última hora, que, antes de se despedir, tratou de colocar debaixo do braço uma daquelas revistas com tarja preta.
— Guima, se precisar, é só chamar!
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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