O principal problema do Brasil de nossos dias é que o presidente só consegue trabalhar com o fígado. Não desopila e não se permite deixar de lado as vísceras e esquecer, pelo menos por uns dias, que nenhum brasileiro normal quer vê-lo, como Trump, na sarjeta política. Todos queremos respeitá-lo como líder máximo do país. Entretanto, seus próprios seguidores continuam distantes dos protocolos básicos da boa vizinhança. Não é alvissareiro, mas até podemos nos odiar. Todavia, para o bem da Nação, poderíamos aproveitar a chegada da vacina e assinar unilateralmente uma trégua. Parece um pedido improvável de ser aceito, mas está feito o convite.
O primeiro passo poderia ser do próprio Bolsonaro, que não deixaria de ser o mandatário se convidasse para a mesma mesa o governador de São Paulo, o tucano João Dória, e outras lideranças desafetas, como o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM), ministros do Supremo Tribunal Federal, governadores e prefeitos recém-empossados. Seria um nobre gesto de grandeza, pois a forma de governar do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump – que, no último suspiro, disse ter agido do seu jeito – comprovou que não adianta governar dividindo pessoas, expurgando adversários ou desmilinguindo instituições. O ônus é alto e, infelizmente, sobra para todos, inclusive para quem nada tem a ver com o conflito: o povo pagador de impostos.
É necessário e urgente que, mesmo com a crise sanitária, que se fume, no mesmo pitoco, o cachimbo da paz. Improvável que Bolsonaro admita a derrota para Dória no episódio da CoronaVac. Aceite-o e o entenda como uma rasteira fundamental para o posicionamento do Governo Federal com os pés definitivamente no chão. Independentemente do cargo ocupado ou do poder que disponha, nenhum mortal – o presidente, seus filhos, ministros, súditos, correligionários e afins são humanos – deve ser tratado de modo diferente. Dória pode ser uma piada – acho que é -, mas merecia respeito, principalmente porque, demagogia ou não, estava trabalhando para salvar vidas. No fim e ao cabo, a piada derrubou o rei.
A monotonia do País tem a ver com a forma “jabutiniana” do governo. Muito menos por conta da pandemia e muito mais pela letargia que tomou conta da administração federal, o País está parado de A a Z. Nem mesmo o safo Itamaraty conseguiu cumprir prazos no andamento ao protocolo de compra da vacina indiana. Perdemos tempo, consequentemente vidas, que poderiam ser salvas com a imunização conjunta do Instituto Butantan e da Fiocruz. Triste atestar, mas vivemos uma nação monotemática, do tipo enceradeira, ferramenta que gira, gira e não sai do lugar. Até no universo político estamos engessados. Parece que, entre 212 milhões de habitantes, dispomos apenas de Jair Bolsonaro, João Dória, Luiz Inácio Lula da Silva e Luciano Hulk com capacidade para disputar a Presidência da República em 2022.
Dormimos, sonhamos, resmungamos e acordamos no mesmo buraco negro da inércia. Como escreveu o poeta K.O’Meara em 1800, durante a epidemia de peste, “Quando a tempestade passar, as estradas se amansarem e formos sobreviventes de um naufrágio coletivo, com o coração choroso e o destino abençoado, nós nos sentiremos bem-aventurados só por estarmos vivos. E daremos um abraço ao primeiro desconhecido e elogiaremos a sorte de manter um amigo”. Mais de 220 anos após sua divulgação, o poema é tão eloquentemente atual que até incomoda àqueles que fogem, os que insistem em manter o coração endurecido e, sobretudo, os que temem ser confundidos pela compassividade.
Navalha e poema – No início desta semana, a jogadora de futebol Marta Vieira da Silva cunhou uma frase que positivamente se tornará célebre em futuro próximo. “Uns serão lembrados como os melhores da história, já outros…”. A alusão da atleta, eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo, ilustra mais uma épica posição de Jair Bolsonaro. Ao criticar uma questão do Enem (Exame Nacional do ensino Médio), que abordou a desigualdade de gênero com um texto sobre a diferença salarial entre Neymar Junior, do Paris Saint-Germain, e Marta, do Orlando Pride, o líder brasileiro foi curto e grosso ao tratar a comparação como absurda: “O futebol feminino ainda não é uma realidade no Brasil”. Falou o que quis, ouviu o que não quis.
Mais uma vez busco o auxílio de K. O’Meara para que reflitamos sobre o óbvio. Se não reagirmos agora, “vamos lembrar tudo aquilo que perdemos e de uma vez aprenderemos tudo o que não aprendemos. Não teremos mais inveja, pois todos sofreram. Valerá mais o que é de todos do que o que eu nunca consegui. Seremos mais generosos e muito mais”. Oxalá sigamos o poema escrito há dois séculos. Caso a unidade prevaleça sobre o conflito, o impensável terá de ser cumprido. Um fígado dilacerado por um carcinoma avançado ou com dificuldades de se regenerar por causa do ódio tem de ser extirpado. A continuarmos com a doença subindo de estágios, será inevitável a dolorosa, mas irreversível, cirurgia.
Citando mais um mestre da poesia – o português Luís Vaz de Camões -, lembro uma frase que o constitucionalista, poeta e mestre em Direito Administrativo Carlos Ayres Britto adora quando quer aludir àqueles que têm poder, mas não sabem exercê-lo: “O fraco rei faz fraca sua forte gente”. Ministro aposentado do Supremo Tribunal, o jurista, sergipano de Propriá, é autor de recente manifestação alusiva à destituição de Bolsonaro. Conforme Ayres Britto, o impeachment é para quem dá as costas à Constituição. Acrescentou que, do ponto de vista jurídico, o presidente cometeu crimes de responsabilidade que justificam o processo.
Resta conhecer o tamanho da coragem do atual ou do futuro presidente da Câmara dos Deputados, a ser escolhido entre Baleia Rossi (MDB-SP), com apoio da oposição, e Arthur Lira (PP-AL), apoiado até o pescoço pelo grupo bolsonarista.
Oposição dorminhoca – Não conheço pessoalmente o ex-ministro Roberto Amaral, com quem, ciente de minhas limitações, posso ter divergências quanto a posicionamentos políticos. No entanto, apenas ouço e endosso seu voto contrário à nossa subserviência ao modelo do império (EUA), “até na má escolha de seus presidentes ou nos erros de suas respectivas oposições”. Ex-presidente nacional do PSB, Amaral entende que as oposições estão “sempre dispostas à política de conciliação, refratárias ao enfrentamento, receosas de rupturas e preocupadas com a ordem e a segurança”.
Em outras palavras, é chegada a hora H para quem pensa contrariamente ao inquilino do Palácio do Planalto. Torna-se imperiosa uma tomada de posições. Se Bolsonaro não quer negociar para tirar o Brasil do fundo poço, fica por conta da oposição esquecer o oba oba, abandonar as cordas, onde o nocaute é mais fácil, e retomar o debate político-ideológico. Como afirma o ex-ministro de boas lembranças, ou calça de veludo ou a buzanfa de fora. Se a oposição não resolver a crise existencial decorrente do impeachment de Dilma Rousseff, da derrocada de Lula e da derrota de Haddad, acabará na segunda divisão da política brasileira.
A quem interessa? Obviamente que à direita. O momento é de união, mas, como dizia meu velho pai Mathuzalém, quando um não quer dois não brigam. Então, como Bolsonaro prefere continuar errando e atolando o Brasil sozinho, que busquemos novas e perenes soluções. Mas, por favor, sem extremismos. Chega de conflitos e de ataques a quem só pensa em afastar a Nação do rótulo de republiqueta de bananas. Vamos produzir coisas boas e escolher pessoas novas, sem vícios. É difícil, mas como este ano não teremos carnaval, aproveitemos para iniciarmos 2021 com otimismo, com o pé direito, com vacina, sem mortes a rodo e, principalmente, com o País nos trilhos. Pensemos juntos antes de que seja tarde. O descarrilamento total está por um fio.
*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978