A decisão do governo brasileiro de limitar o acesso aos dados sobre a pandemia do coronavírus no país e a possibilidade de que o número de vítimas seja recontado pode reduzir investimentos estrangeiros, complicar o acesso a empréstimos internacionais, dificultar viagens de brasileiros ao exterior e até atrapalhar a entrada do Brasil no grupo de países ricos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. É o que dizem especialistas em relações internacionais e saúde pública ouvidos pela reportagem.
“Existe um acordo tácito entre os mais diversos países do mundo de expor o que está acontecendo em cada lugar como uma forma de conter globalmente o problema. Ao reduzir a transparência sobre seus dados, o Brasil passa a ser um risco para a comunidade internacional”, afirma o epidemiologista Rafael Meza, especialista em políticas de saúde pública da Universidade de Michigan.
Na última sexta-feira, após sucessivos atrasos na divulgação do boletim epidemiológico, que trazia não apenas os novos casos de mortes e contaminados, como também o total de doentes e vítimas fatais, o número de óbitos sob investigação e a discriminação dos dados por Estados, o portal do governo federal com as informações foi retirado do ar. Quando voltou, constava no site apenas a estatística de mortes e casos referentes ao dia da divulgação.
“Tem que divulgar os mortos no dia. Por exemplo, ontem, praticamente dois terços dos mortos eram de dias anteriores, os mais variados possíveis. Tem que divulgar o do dia. O resto consolida para trás”, afirmou o presidente Jair Bolsonaro, ainda na sexta-feira, ao justificar a mudança. Com mais de 700 mil casos e 37 mil mortes, o Brasil já é considerado um novo epicentro da pandemia.
“Ao restringir o acesso às informações, o governo apenas piora a percepção sobre a gravidade da crise e aumenta a desconfiança do público internacional em relação à condição do país de gerir a epidemia e a recessão econômica”, afirma Gabrielle Trebat, ex-subsecretária de assuntos empresariais no Departamento do Tesouro americano e atualmente consultora de investimentos para América Latina da McLarty Associaties.
OCDE mais distante
Segundo Trebat, o movimento brasileiro é paradoxal com o interesse de se adequar aos padrões de coleta e publicidade de estatísticas preconizados pela OCDE. O ingresso no grupo de países desenvolvidos foi anunciado como uma prioridade pela gestão Bolsonaro desde o início de 2019. Aliado preferencial do Brasil, os Estados Unidos já endossaram a candidatura brasileira, em troca de concessões como a renúncia da condição de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC).
A OCDE utiliza dados e abordagem científica para aprimorar políticas públicas nos países membros. Em um dos textos sobre princípios que norteiam a instituição em seu site, a organização afirma que “Abertura e transparência são ingredientes-chave para criar responsabilidade e confiança, necessárias para o funcionamento das democracias e das economias de mercado. A transparência é um dos principais valores que norteiam a visão da OCDE para um mundo mais forte, limpo e justo”. A BBC News Brasil consultou a organização sobre como a questão poderia afetar a candidatura brasileira, mas não obteve resposta até a publicação dessa reportagem.
“A ideia de esconder estatísticas ou dificultar acesso a informações não poderia ser mais contrária aos princípios da OCDE. Isso certamente vai se somar para criar uma imagem negativa do país e dificultar a entrada no grupo”, afirma Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional Brasil.
Segundo Brandão, o modo como o Brasil tem tratado dados públicos tem gerado mal-estar internacional. Ele rememora tentativas de restringir o alcance da Lei de Acesso à Informação, já derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso, e a demissão do diretor do Instituto Nacional de Pesquisa (Inpe) em agosto do ano passado depois que dados do órgão mostraram desmatamento recorde na Amazônia. O caso gerou a primeira grande crise de imagem internacional do país.
De acordo com Michelle Ratton, especialista em direito econômico internacional da Fundação Getúlio Vargas, ao alterar os cálculos sobre a pandemia, o governo federal não só lança dúvidas sobre as estatísticas nacionais como também sobre o corpo de técnicos que desenvolve o trabalho no país. “O Brasil se arrisca a sair da parametrização internacional, deixa de ser estudado. Algo parecido com o que estamos vendo com a China, que é ignorada em vários estudos internacionais porque não há confiança na validade dos dados que ela apresenta”, diz Ratton.
Sem viagens ao exterior
Em 19 de março, enquanto a epidemia mal havia se instalado no Brasil, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, acusou a China de ter omitido informação sobre a doença e potencializado a pandemia ao redor do mundo. “Quem assistiu Chernobyl vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. […] +1 vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. […] A culpa é da China e liberdade seria a solução”, escreveu o deputado em sua conta de Twitter, abrindo uma crise diplomática com os chineses.
Quase três meses depois, o epidemiologista Meza compara a atitude do governo chinês em relação às estatísticas com o comportamento da gestão Bolsonaro. “Mas há uma diferença importante. A China pode ter omitido dados, mas tomou medidas agressivas para conter a doença. Já o presidente brasileiro nega a gravidade do assunto e não está tomando ações nem para defender seus próprios cidadãos, nem o mundo”, diz.
Nesse cenário, o epidemiologista avalia que restrições internacionais à entrada de pessoas oriundas do Brasil podem ser mantidas por mais tempo do que o esperado. Hoje, essas restrições a viagens já estão postas: a Europa e a América do Sul fecharam suas fronteiras e os Estados Unidos proibiram a entrada no país de qualquer estrangeiro que tenha passado pelo Brasil nos 14 dias anteriores à viagem.
“O foco atual de atenção para covid-19 é a América Latina e o Brasil. O mundo todo está prestando atenção porque uma segunda onda de casos pode vir desses lugares. Ao negar informações, o Brasil está erodindo a confiança internacional e não é improvável que os demais países decidam banir a entrada de brasileiros por mais tempo por conta dessa falta de segurança sobre a situação”, afirma Meza.
Para ele, em uma epidemia, a contagem de mortos e doentes é difícil e nenhuma métrica será perfeita. No entanto, é preciso manter consistência em relação aos dados para permitir que observadores internacionais possam compreender a curva que a pandemia descreve em cada país e compará-las entre si.
O dinheiro pode não vir de fora
Para Ratton, dar publicidade às estatísticas é importante também porque, diante de um cenário de recessão profunda (o fundo monetário internacional estima queda de 5,3% na economia esse ano), o Brasil precisará de capital externo para ajudar a reerguer a economia. “Há uma grande preocupação hoje para que não haja abuso ou corrupção nos auxílios para recuperação econômica. Se o Brasil do nada aparece com um número alto de casos e pede socorro financeiro, esses números vão ser disputados e esse pedido pode ser deslegitimado”, diz.
Ratton argumenta ainda que, enquanto o investidor especulativo pode ser indiferente ao problema porque está acostumado a tomar riscos mas tem pouco peso em promover abertura de postos de trabalho, o investidor do setor produtivo, capaz de reaquecer a economia, tende a ser afugentado por esse tipo de medida pouco transparente, que sugere um ambiente de negócios pouco confiável.
“O investidor não quer atuar em um ambiente opaco”, concorda Trebat. Segundo ela, os solavancos causados pela pandemia não afetaram a negociação de medidas de facilitação do comércio e de unificação regulatória entre Brasil e Estados Unidos, que devem ser anunciadas ainda esse ano. “A preocupação é pra não deixar essa questão política interferir na negociação que estamos vendo”, diz.
Na sexta-feira da semana passada, o presidente americano Donald Trump criticou a condução do problema de saúde pública no Brasil, ao dizer que se tivesse tomado o mesmo caminho do país “teríamos 2,5 milhões de mortos”. Os Estados Unidos perderam 112 mil vidas na pandemia.
Se nos Estados Unidos a questão comercial não preocupa, Ratton afirma que o acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul pode ser impactado pela omissão de informação do Brasil acerca da covid-19. Há duas semanas, o Parlamento holandês sinalizou que não aprovaria o tratado, cuja entrada em vigor depende da anuência do legislativo de cada país do bloco. Na ocasião, os holandeses mencionaram discordâncias em relação à política ambiental do Brasil para justificar a posição.
“Ao tomar medidas como essa da falta de transparência de dados, o governo Bolsonaro dá munição para a derrubada desse acordo e abre espaço para que se use o tema como desculpa para medidas protecionistas”, afirma Ratton.