O presidente Jair Bolsonaro foi à TV nesta quarta-feira comemorar o marco da distribuição de 100 milhões de doses de vacina contra a covid-19 no país. Além de omitir que seu Governo passou boa parte de 2020 ignorando ofertas de dois fabricantes de imunizantes, o presidente mentiu mais uma vez ao dizer que o país é o quarto do mundo que mais vacina, já que não considerou um aspecto: a porcentagem da população já vacinada, crucial para a imunização coletiva. Nesta contabilidade, o Brasil está atrás de pelo menos 77 países, segundo dados compilados pela Universidade de Oxford. Há apenas cerca de 10% dos brasileiros imunizados completamente (duas doses). Este cenário aliado ao fim da maioria das medidas de restrição de circulação ―o presidente fez questão de atacar o isolamento social no pronunciamento― mostram que a provável e bem-vinda aceleração da vacinação em junho, após uma série de atrasos, deve ser acompanhada por uma severa terceira onda de contágios da doença.
“O nosso Governo não obrigou ninguém a ficar em casa, não fechou o comércio, não fechou igrejas ou escolas e não tirou o sustento de milhões de trabalhadores informais”, repetiu Bolsonaro, enquanto enfrentava panelaço de protesto em várias cidades do país, em mais uma provocação direta a governadores que têm de voltar a restringir as atividades públicas para tentar ao menos minimizar a pressão sobre o sistema de saúde pública. Nesta quarta-feira, os novos casos registrados de covid-19 no Brasil chegaram a 95.601, de novo um patamar alto que indica aceleração dos contágios, com os mortos na pandemia se aproximando de 468.000.
Em Curitiba, no entanto, a situação já é de colapso. A capital do Paraná voltou à fase vermelha, a mais dura de restrições, e já tem UTIs com mais de 100% de leitos ocupados. No Estado a situação é apenas um pouco melhor. Até primeiro de junho, havia 1.212 pacientes suspeitos ou com confirmação de estarem com covid-19 aguardando internação em leito exclusivo ― lotação de 95% para vagas de terapia intensiva. A situação de 100% de ocupação de leitos de UTI também já acontece em ao menos mais duas capitais, Aracaju e Campo Grande, segundo a Folha de S. Paulo. Na TV, Bolsonaro também anunciou que o país vai receber a Copa América, entre junho e julho, uma decisão criticada por especialistas, que veem no torneio continental de futebol mais um superdifusor do vírus. “Nero incendeia Roma tropical e autoriza futebol no Coliseu”, criticou o neurocientista Miguel Nicolelis em seu podcast no EL PAÍS.
Volta às restrições
No Paraná, o governador Carlos Massa Ratinho Jr. (PSD) aumentou as restrições de circulação e do funcionamento do comércio em todo o Estado desde a semana passada, em 25 de maio. Dois dias depois, Bolsonaro acionou o Supremo Tribunal Federal contra os decretos do Paraná, de Pernambuco e Rio Grande do Norte, adotados para frear o contágio da doença. Desde o último sábado, a capital Curitiba voltou para a bandeira vermelha, alerta máximo para pandemia, pouco mais de dois meses após a decretação de uma espécie de lockdown.
O roteiro da terceira onda em Curitiba percorre o que já havia sido descrito pelos epidemiologistas. Enquanto nas últimas semanas de abril as estatísticas indicavam uma média de 400 novos infectados por dia, no dia 28 de maio a cidade voltou a superar 1.000 casos diários. O pico ocorreu 19 dias após o domingo de Dia das Mães, em 9 de maio. Na data, Curitiba flexibilizou a chamada “quarentena de domingo” e permitiu que o comércio abrisse. Desde setembro de 2020, a cidade adotou o fechamento dos serviços não essenciais aos domingos como medida de controle. A situação no sistema de saúde ―seja público ou privado― é alarmante: além da ocupação de leitos de UTI SUS exclusivos para covid-19 superarem os 100%, e as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) viraram unidades de internamento para abrigar mais pacientes da doença.
Gestores de saúde afirmam que esse é o pior momento da pandemia de coronavírus no Paraná. “É triste conviver com um número de óbitos três vezes maior do que pré-covid-19. A verdade é que não existem mais leitos em Curitiba. Pedimos que a sociedade nos ajude”, disse Geci Labres, diretor do Hospital do Trabalhador, ainda na sexta-feira passada. Também há temor que faltem medicamentos do chamado “kit intubação” ―as autoridades negam que exista risco de escassez, mas esperam que o novo período de lockdown contribua para a “preservação” dos estoques.
A permanência prolongada em ventilação mecânica e a tolerância de pacientes aos medicamentos são alguns fatores preocupantes, explica o médico intensivista do Hospital Cajuru, Juliano Gasparetto. “Hoje os pacientes ficam de quatro a oito semanas em ventilação mecânica, e há uma grande necessidade de sedativos e bloqueadores neuromusculares”.
O esgotamento das equipes médicas com o dia a dia puxado é outro aspecto cruel após um ano e meio de emergência sanitária. “O que não é acostumável é a quantidade de pessoas que a gente vê morrer todos os dias. Para aguentar é escitalopram [um antidepressivo] e terapia duas vezes na semana. Difícil entre os colegas ver alguém que não esteja na terapia e tomando ansiolítico ou antidepressivo”, relata o chefe do serviço de clínica médica do Hospital do Trabalhador, Diego Schuster Paes.
Na manhã de domingo, 30 de maio, quando conversou com o EL PAÍS após seu plantão no HT, Paes contou que precisou entubar a mãe de uma colega de trabalho, e teve de informá-la sobre a gravidade do quadro. “Isso é muito desgastante.” Também tem sido comum, relata o médico, a mudança no perfil dos pacientes: a média de idade atual de internados em UTI é de menos de 40 anos. Fila de ambulâncias na porta do hospital e gestantes graves também passaram a integrar a rotina do atendimento em 2021. “Uma gestante de 30 semanas chegou com insuficiência respiratória. Entubamos para evitar parada cardíaca, fizemos cesariana para poupar o nenem, mas ela acabou morrendo. A mulher entra no hospital para um momento que seria feliz, e o pai sai com a criança no colo e a mãe no caixão”. O médico relata que a superlotação vem exigindo que as equipes lidem com “carteiradas”, ou seja, pedidos para atendimento de pessoas próximas a funcionários do governador do Estado. “Acredite, temos que aguentar esse tipo de desaforo todos os dias.”
“Vida normal” e terceira onda
A retomada de atividades de maneira precoce é uma das causas centrais para o novo aumento de casos de covid-19 no Brasil, segundo mais recente boletim InfoGripe divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz. “Tal situação manterá o número de hospitalizações e óbitos em patamares altos, com tendência de agravamento nas próximas semanas”, disse no informativo o coordenador do InfoGripe, Marcelo Gomes. Das 27 capitais brasileiras, 11 apresentam sinal de crescimento, de acordo com os pesquisadores.
A bandeira vermelha em Curitiba seguirá pelo menos até 9 de junho. Quando reaberto o comércio, estratégias como testagem em massa dos trabalhadores do segmento serão adotadas, segundo a secretária municipal de saúde, Márcia Huçulak. Questionada pelo EL PAÍS sobre o uso de máscaras do modelo PFF2, apontadas em pesquisas recentes da Universidade de São Paulo e Universidade Federal do Paraná como as mais efetivas na proteção (filtra até 98% das partículas), a secretária falou que a medida não integra os planos.
A distribuição de máscaras PFF2, citada em março na carta dos economistas e banqueiros cobrando o Governo federal sobre medidas de combate à pandemia, nunca integrou uma campanha ou política pública nacional ou de Estados. A medida seria essencial para diminuir a contaminação, que ocorre principalmente pelo ar, com os chamados aerossóis, que são expelidos quando falamos e se acumulam sobretudo em lugares fechados. “Desde o começo da pandemia houve um erro grosseiro sobre como o vírus é transmitido. Se deu muito foco a superfícies e gotículas maiores, e pouco aos aerossóis. Os gestores de saúde se apegaram a esses conceitos defasados, e por isso não tomaram essa medida como política pública”, opina Vitor Mori, físico, pesquisador da Universidade de Vermont, nos EUA, e membro do Observatório Covid-19 BR. O especialista defende que profissionais essenciais como professores, trabalhadores do transporte público e que operam em locais fechados e sem ventilação têm de receber o tipo de proteção.
Márcia Huçulak diz ter “convicção” de que essa seja a última onda de alta de casos na capital paranaense. O médico Diego Paes acha a perspectiva pouco provável. “O fato é que os hospitais sempre estiveram cheios, o que muda é a fila para fora. Depois que as medidas de isolamento afrouxarem nós atenderemos a 4° e a 5° onda, além dos pacientes sequelados pela covid”, afirma o profissional do Hospital do Trabalhador. “O que mais me angustia não é o isolamento, a sobrecarga de trabalho. Mas a falta de perspectiva. Na prática, a gente está vivendo sem futuro.”