Marca registrada das Forças Armadas, a discrição parece cada vez mais distante do conceito de servir ao povo do presidente da República e de alguns oficiais generais da ativa e da reserva. Constituídas pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, com a missão de zelar pela defesa da Pátria, pela garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem. A recente decisão do comando do Exército sobre o general Eduardo Pazuello destoa do histórico da Força e pode gerar, a curto ou médio prazos, a politização dos quartéis, com o consequente risco à democracia. Independentemente da necessidade interna de não causar conflitos com o presidente, chefe supremo das Forças Armadas, a decisão elevou a temperatura política e praticamente assegurou a politização dos quartéis sem a preocupação de punições.
Nenhum brasileiro imaginava mais essa situação para o país. Em entrevista a um jornal carioca, o chefe da Casa Civil e ex-ministro da Defesa, general da reserva Luiz Eduardo Ramos, defendeu a absolvição “extremamente pensada” do ex-ministro da Saúde. Disse que pesou a favor a história de vida do colega castrense. É possível que Pazuello seja disciplinado, um bom homem, ótimo marido, excelente pai e prestativo vizinho, mas, como militar da ativa, violou o regulamento ao fazer comício para o presidente da República em praça pública. Pode até ser um fervoroso torcedor do Flamengo, mas, de caso pensado, deflagrou a maior crise envolvendo as Forças Armadas desde a redemocratização do Brasil. E, como disse o cientista político Octávio Amorim Neto, não faltaram alertas sobre os riscos dessa aventura.
Na verdade, a exposição negativa do Exército não corresponde ao desejo da maioria dos integrantes do Alto Comando, tampouco dos generais que já serviram ao governo do capitão e que, pelo bem da família e da saúde mental, pediram de volta o quepe da liberdade e da sensatez. Um deles, do meu convívio, definiu brilhantemente a quadra que vivemos. Segundo ele, a direita liberal e conservadora deve conseguir o que a esquerda radical pode ter tentado, mas jamais imaginou alcançar: a descaracterização e a divisão das Forças Armadas. Vale lembrar que o embarque de determinadas lideranças no radicalismo de Jair Bolsonaro não é novo. O primeiro pontapé do projeto ocorreu em 2018, quando o general Villas Boas, então comandante do Exército, tentou “obrigar” o Supremo Tribunal Federal a manter Luiz Inácio distante do processo.
Era um provável início da anarquia. Depois de muito tititi, Villas Boas voltou ao ostracismo. O problema agora tem um nome e sobrenome que, mesmo nas hostes castrenses, poucos conheciam. Livrar Eduardo Pazuello pode ser a senha para a insubordinação em patentes inferiores. Para temor dos homens e mulheres de bem, o ex-deputado federal Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa de Dilma Rousseff, concorda com a tese de que a salvaguarda de Pazuello é perigosa para os escalões menores das três forças. Embora somente meia dúzia de fanáticos torça e vibre com a radicalização, a verdade é que sou obrigado a concordar com a afirmação de Rebelo, para quem “o Exército abriu as portas dos quartéis à anarquia”. A paz está longe. A situação é crítica. A polarização política emergiu assustadoramente depois do crescimento de Lula da Silva em todas as pesquisas de intenção de votos.
O presidente da República é golpista por natureza. Apesar de tudo, adiro à posição daqueles que não acreditam na capacidade e coragem de Jair Bolsonaro em promover uma ruptura democrática apenas para favorecê-lo eleitoralmente. Como ouço diariamente do jornalista Paulo Antônio Soares Cotta, a execução de um golpe depende de clima. E o Brasil de hoje, pária do mundo, felizmente não tem. O povo – e não a meia dúzia de aloprados – precisa ter argumentos para apoiar uma eventual tomada de poder por alguém que já se vê derrotado nas urnas. Por mais que discordemos, o estopim para o golpe militar de 1964 ocorreu no dia 13 de março daquele ano, durante o comício de João Goulart e Leonel Brizola na Central do Brasil. Após a inflamada resenha, Jango determinou a reforma agrária e a nacionalização das refinarias estrangeiras de petróleo.
Por conta disso, a elite da década, representada pelo clero conservador, o empresariado, a imprensa e a direita, organizou, em São Paulo, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, reunindo cerca de 500 mil pessoas, uma multidão para as estatísticas da época. A tônica dos discursos era o repúdio às tentativas de reforma constitucional e a defesa dos princípios, garantias e prerrogativas democráticas. Simbólica e literalmente apoiados pelo governo norte-americano, homens e mulheres saíram as ruas porque acreditavam em futuro de ruínas para o Brasil. Unidos interna e externamente, os militares tinham clima e apoio popular. Ainda que tenso, o atual ambiente é muito mais de fofoca e de busca de poder. Se puder, de poder perpetuado. A narrativa de hoje é o combate ao comunismo. Que comunismo, Zebedeu?
Esse povo não sabe o que diz. É cristalino que a compreensão da proposta golpista não é bíblica, muito menos de conserto nacional. É puramente de medo, desânimo, receio e pavor da derrota. Mesmo sem ter sido inocentado, Luiz Inácio voltou para confundir, tumultuar e ganhar. De concreto, não podemos olvidar que, ao contrário de 1964, as Forças Armadas de hoje são compostas de numerosos simpatizantes da política bolsonarista. Entretanto, para alívio da maioria, também dispõe de vários admiradores das pautas da esquerda. Para nosso definitivo desafogo, o melhor de tudo é Joe Biden, presidente dos Estados Unidos. Biden não é John Kennedy ou Donald Trump, não tem um embaixador no Brasil como Lincoln Gordon, tem interesses diferentes na Terrra Brasilis e nenhuma sintonia com o capitão. Confiemos em Deus, que é grande, brasileiro e democrata.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978