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‘Bom mesmo é curtir amor rasgado, latino, trágico e dançante’

1.
Eu me chamo Valentino. Desde menino sou viciado em fotonovelas, filmes de amor e nas novelas da TV. Não as séries de amor na Netflix. Não aquelas histórias psicológicas, “cabeça”, de Bergman, Antonione. Não. Gosto do amor rasgado, latino, trágico e dançante; as histórias meladas, cotidianas. Existem amores que morreram há tempos, mas aparecem de vez em quando, como assombrações. Gosto dos amores comuns, do quase banais; romances do dia a dia. Amo as lembranças amorosas. Dramas delicados, sensíveis. Lembranças/criaturas que nos fazem uma visita breve, aparição inesperada e depois somem no ar, sem arrepios ou medos. Assumem o clichê do abandono e partem, sem deixar vestígios. E nos deixam com aquele gostinho de “quero mais”.

2.
Estes amores, às vezes, nem se mostram inteiros. Os meus casos de amor foram rápidos, secos, de desfechos súbitos, como nos contos. E cheios de clichês. Surge uma boca, um olhar, um toque na pele, um seio, um jeitinho de dançar, de andar com a mão esquerda agarradinha no braço da gente. Quando a gente vai prestar atenção, Zás! A criatura some no ar. Era assombração. O fantasma antigo pode aparecer de repente no meio de uma leitura de um ensaio técnico-científico, no início de uma reza de Terço ou mesmo ao escovar os dentes após um almoço dos deuses. Não manda aviso, não dá sinal; se intromete com aquele olhar, aquele cheiro de óleo de amêndoas, aquela luz sensual e tá feito. A gente procura entender, mas nada…Não, não é saudade (será?); parece dor, manipulação, despeito (mas nem houve traição…). Não se explica. É intromissão inesperada pura e simples.

3.
Com Sarita foi assim. Começou as visitas há mais de um ano. Ainda ontem mesmo. A criatura surgiu concreta -como se fosse um holograma-, eu quase podia tocar. E eu ouvia “Dois pra lá, dois pra cá”, a nossa canção. Com ela vieram os cheiros, a lembrança dos sabores, como aquele molho à bolonhesa da inesquecível macarronada no primeiro dia em que apareci na casa dela, após décadas sem notícias. Quando dei por mim, bailava leve pelo carpete da sala. E aquele jeito de dançar com os pezinhos para dentro e o sorriso eterno de menina? Fatal. Quem governa um amor fantasma? Uma paixão assombração? Ninguém. Ele mesmo se convida, aparece, toma conta da casa, de tua cabeça e de seus mais profundos sentimentos. Parece coisa das minhas fotonovelas de menino, aqueles dramalhões de folhetins da TV, em que sempre há uma amiga fiel que diz, “Ele ainda gosta dela, está claro…não vive sem ela e está enlouquecendo…”. Há música romântica, clímax…e Sarita se foi. “Intervalo para o comercial das Casas da Banha, a paixão pela metade do preço”.

4.
Tenho penado demais com estas repetidas visitas; sempre a mesma assombração: Sarita e sua boca pornográfica carmim. Talvez seja apenas um capricho da etérea criatura; uma armadilha complexa de minha psiquê que teima em manipular os meus desejos e sentimentos mais íntimos. Mas o fato que mais dói é mesmo a prepotência e a indiferença da ex-amadinha de tantas juras e dedicações: faz a sua visita, deixa o estrago e some. Desaparece no ar. Momentos depois, ainda boquiaberto e com o olhar perdido no espaço, fico tentando lembrar o que ela disse e surgem perguntas vagas, frases meio desconexas de confissão ou desprezo…”Você um dia me amou de verdade?”…”jamais pensei que iria te esquecer tão rápido”. Outra frase, espantada, tipo no escuro…”Quem é você? Percebo que não te conheço mais…meu Deus! É você?”.

Amores de outro mundo devem ser amores libertos, sem escrúpulos. Não se sentem obrigados a nada. Diálogos, papos furados, etiquetas. Nada. Surgem, chutam o balde, destelham a casa, bagunçam os nossos sentimentos. Enigmáticos, apenas nos observam, riem sarcasticamente e nos deixam naquele infinito vazio, sozinhos. Tenho observado Sarita. Nas últimas semanas, parece que há algo diferente nesta relação. As imagens estão mais opacas, sem o brilho de antes, as cores têm menos contraste. O som também é mais baixo, quase imperceptível, como num filme mudo. A assombração tem mexido comigo de formas diferentes. Uma foto, o acorde de uma música marcante, as covinhas no lado direito do delicado rosto, a língua entre os dentes, o meigo olhar. Falta algo. Na memória, parece não ter mais aparência definida, corpórea. As lembranças lentamente parecem se apagar com o passar dos dias. Frágeis e amareladas, como velhas cartas que se esfarelam; pequenos poemas esquecidos no fundo de uma gaveta qualquer. Mas nem por isto, Sarita – digo, a assombração – apresenta-se menos real em suas visitas inesperadas.

5.
Sim, Valentino, homenagem de minha mãe, apaixonada pelo Rodolfo, “o homem mais lindo que já surgiu no cinema”, dizia ela. Com Sarita, honrei o nome de grande amante. Nada ficou por explorar; experimentamos todos os ingredientes calientes de um intenso caso de amor: descoberta, atração, desejo, paixão, carinho, companheirismo, desamor e fuga.

Creio que ontem foi uma despedida. Sigo pensando nos fantasmas de ocasião como seres extraordinários, frutos de imensa imaginação e amor pela vida. Quando os seus corpos ainda eram matéria concreta, a vida também foi verdadeira, real e houve felicidade. Criaturas mágicas que não vagam por ai batendo pernas à toa, no desespero. Não. Sabem exatamente em que lembranças incorporar; quais as suas cenas e histórias exatas. Nunca ficam satisfeitas em seu cantinho. São visitas inesperadas que nos impõem a reinvenção e nos fazem renascer, como a Fênix, das cinzas. Zombam da gente com charme e certa “peninha” por sermos tão fragilmente humanos. Desdenham a nossa carência. Sinto que Sarita veio ontem apenas para se despedir. Como alguém prazeroso em sua aura de infinita saudade. Penso nela, hoje, como as borboletas: surgem, passam, enfeitam o instante com cores marcantes, batem asas e partem para sempre. Deixam um gosto de mel na boca e um sorriso abestalhado na alma do visitado.

6.
Sei, já não é mais uma crônica. É um conto. Se chegou até aqui, prepare-se para o “gran finale”: ontem matei Sarita. Matei!!! (tcham! Efeito sonoro forte, clímax intenso, emoção no ar). Silenciosamente, ainda sinto em mãos o calor de seu corpo inexistente. Matei assim…como quem extirpa um câncer; soluçando, porém, decidido. A gratidão é um sentimento que, mesclado ao perdão, resulta em uma nova dimensão de vida cósmica. Quem sabe isto seja o amor. Reinventa. Acalma. Acolhe. Cura. E volta. Eu sei que Sarita volta. Os grandes amores não morrem jamais.
Até a próxima visita inesperada, Sarita!
____

*”Falso Brilhante”
(João Bosco / Aldir Blanc)

“O amor
É um falso brilhante
No dedo da debutante
O amor
É um disparate.
Na mala do mascate
Macacos tocam tambor…”

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