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Boris vai ao passado, chora e faz psicólogo chorar

Boris Scherer, 56 anos, alto, loiro, olhos azuis, pele tão branca, que lhe dava aquele aspecto de boneco de cera, parou diante da porta. A placa indicava que estava no local certo: Dr. José Oliveira Silva, psicólogo. Não foi preciso se anunciar, haja vista um homem quase tão alto, pele escura, olhos profundos e sorriso largo o recebeu, ao mesmo tempo em que o cumprimentou. Era o dono não só da placa, mas daquela sala inteira, que se abriu de maneira acolhedora para o paciente. Primeira consulta.

— Fale sobre você.

— O que você quer saber?

— Tudo o que você quiser falar.

Boris, com os olhos voltados para o tapete com formas geométricas, tentou buscar seu passado mais longínquo, onde se encontrava com seus lá quatro, cinco anos. Estava brincando no canto do escritório do pai, Klauss Scherer.

O agora paciente herdou a aparência do pai, que, àquela época, era mais jovem que ele é hoje. Não mais de 40 anos, talvez 36. Detalhes sem a menor importância. Quanto ao temperamento, por mais que Klauss tivesse tentado incutir seu modo de ser no filho, o fruto não poderia ter caído mais longe do pé.

— Meu pai era controlador. Era um bom homem, mas gostava de manter as rédeas firmes. Bruto, mas creio que todos os homens eram assim naquela época. Minha mãe sempre me falava para respeitar meu pai, pois era ele que mantinha a família unida. Ele era o homem da casa, o sustento de todos nós.

Pelas próximas quase duas horas, o psicólogo escutou atentamente o paciente e, ao final, os dois se despediram com um forte aperto de mãos. Boris, apesar de contido nas emoções, não conseguiu esconder a fragilidade no olhar ao remexer o passado. Mas parece ter saído aliviado e, caminhando pelo amplo corredor, chegou ao elevador, que o levou até a garagem do edifício. Ligou o automóvel e voltou para casa, onde encontrou a esposa e os dois filhos adolescentes.

— Como foi a consulta, meu amor?

— Boa.

— Gostou do psicólogo?

— Sim. Agendei nova sessão para semana que vem.

A semana caminhou a passos lentos. Boris queria porque queria contar tantas outras coisas para o psicólogo. É verdade que pensou em desmarcar a consulta, pois não queria relembrar tempos tão difíceis. Todavia, ao recordar da sensação de leveza que o acompanhou no caminho de volta para casa, desejou reencontrar novamente o profissional.

Pouco antes do horário, Boris estava diante da porta do consultório. José o recebeu de braços abertos, o que fez o paciente se sentir acolhido de maneira incomum para o mundo que lhe fora apresentado desde a mais tenra idade.

— Meu pai, sempre autoritário, não aceitava que eu chorasse. Sempre dizia que homem não chora. Minha mãe, talvez receosa da reação do marido, nada dizia. E, quando estávamos sozinhos, ela enxugava minhas lágrimas em sua saia e me mandava lavar o rosto antes que meu pai retornasse. Aquilo sempre me pareceu algo normal, que certamente acontecia em todas as famílias. Levei anos para perceber que, apesar de acontecer com bastante frequência, aquilo não era normal.

Boris, após quase seis meses de consultas, conseguiu se livrar de vários traumas de infância. No entanto, um ainda estava instalado bem lá no fundo do seu subconsciente. Mas, naquela sessão de agosto, tudo veio à tona.

— Sei que estava prestes a completar dez anos, pois acompanhei meus pais até o supermercado para comprar refrigerante. Estava eufórico, mas contido para não tomar bronca do papai. Ele segurava firme o meu pulso, como um carcereiro conduzindo o preso. Percebi um menino, praticamente da minha idade, empurrando um carrinho de compras pelos corredores. Ele me pareceu bem feliz e, obviamente sem querer, esbarrou o carrinho na minha perna. O garoto se voltou para mim e tentou se desculpar, mas meu pai, ríspido, o segurou pelo braço. Comecei a chorar, não sei se pela dor ou se por presenciar aquela violência. Meu pai, ainda segurando firme o braço do menino, me mandou chutar a sua perna. Eu não queria agredi-lo, mas meu pai me ordenou. Chutei a perna do menino uma, duas, três, dez vezes. Não me lembro de quantas, até a minha perna ficar doendo demais para prosseguir. O menino, imóvel, aguentou sem derramar lágrimas. Meu pai o soltou, e o menino foi embora. Desde então, isso me consome de tal modo, que até hoje procuro por aquele menino para lhe pedir desculpas.

O psicólogo abraçou o paciente, que chorou copiosamente por minutos. Soluços, pedidos de desculpas para aquele menino do supermercado. Após quase meia hora, Boris se despediu de José. A próxima sessão seria na semana seguinte.

Naquele dia, José entrou em seu apartamento. Não sentiu vontade de acender a luz. A escuridão era necessária para acalmá-lo após mais um dia de trabalho. Que turbilhão de emoções! Pensou em se servir uma dose de uísque, mas preferiu manter a mente limpa.

O psicólogo se dirigiu ao banheiro, onde ligou o chuveiro, enquanto retirava a roupa e a jogava no cesto ao lado. Sentiu a temperatura da água, entrou debaixo da ducha. A água morna caiu sobre sua cabeça, seus ombros largos, como se tirassem toneladas de angústias guardadas há tempos. Com o rosto virado para o chuveiro, as lágrimas foram levadas pela água. Passou a mão pela perna esquerda. Ele não era o único que carregava o trauma daquele dia.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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