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Hemingwayanos nordestinos

Bosco e Jair, opostos de Santiago, têm muitas histórias para contar

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Autor/Imagem:
José Seabra - Foto Acervo Pessoal

Em um canto da praia, sob a sombra generosa de um coqueiral, Bosco e Jair, dois amigos de longa data e vivências acumuladas, ajeitam-se ao redor de uma mesa previamente preparada por Nêgo, dono, junto com a esposa Fau, do aconchegante bar da paradisíaca Itapuama. O calor, embora moderado pela sombra das folhas dos coqueiros e um guarda-sol, aquece as recordações que começam a deles fluir. São personagens reais, o oposto de Santiago, criado por Ernest Hemingway. Suas histórias de pescador, embora haja quem as digam improváveis, são fantásticas, contadas com tamanha seriedade que convencem quem as ouve.

“Rapaz, um dia desses, lá pras bandas de Gaibu”, disse Bosco, com aquele ar de mistério típico de quem está prestes a narrar uma grande proeza, “joguei a rede, e quando puxei, veio um robalo com mais de metro e 10 quilos; tão grande que a jangada quase virou!” O narrador faz uma pausa estratégica, para dar peso ao relato. “Era um robalo bravo, parece que olhava pra mim com raiva, como se dissesse ‘tá pensando que vai me pegar fácil?’.”

Jair, conhecendo o jeito de Bosco, segurava o riso. É claro que o robalo não era tão grande assim, mas ele não perderia a chance de entrar na brincadeira. “E você conseguiu domar o bicho?” perguntou, com a mesma expressão solene.

“Oxê, se consegui!” respondeu Bosco, inchando o peito. “Dei um jeito nele e levei pra casa. Quando a vizinhança viu o tamanho, ninguém acreditava.”

Jair, com a cabeça balançando, pede para relatar uma experiência própria. “Pois te digo uma, Bosco. Lá pra cima, em Barra de Jangada, uma vez pesquei um xaréu com 1 metro e 10, pesando 23 quilos. Peixe esperto, brigou com meu anzol, só faltava falar. Eu tentava puxar, e o danado ia desviando da linha, parecia que conhecia as artimanhas todas. Só consegui pegar porque cantei pra ele dormir.”

Os dois caem na risada. Sabem que as histórias são exageradas, mas a graça está justamente nos detalhes absurdos, nas invenções que, ao longo dos anos, se tornaram quase reais para eles. É a magia das velhas histórias de pescador, contadas com o prazer de quem viveu – ou quase viveu – cada momento.

Ao final do dia, com o sol se pondo, com a praia e o bar envoltos em uma luz suave, Bosco e Jair se despedem, prometendo se encontrar no dia seguinte para relembrar outras façanhas. Cada um volta para casa com a sensação de que, mesmo que o tempo passe, as boas histórias permanecem – grandes e indomáveis como a maior das pescadas (a amarela) que chega a pesar mais de 20 quilos.

O certo é que, ao contrário da luta solitária de Santiago com o mar, que Hemingway magistralmente narrou, nas areias quentes do litoral pernambucano os dois velhos amigos vivem em harmonia com o oceano, sem pressa, sem grandes batalhas. Para eles, o mar não é um oponente, mas um companheiro sereno, de longas tardes preguiçosas.

Bosco e Jair beiram os 70 anos. Pescam juntos desde o tempo em que as têmporas eram negras e o peito inflava de sonhos. Aposentados, descobriram em Itapuama um refúgio para o corpo e a alma, um lugar onde, finalmente, o relógio deixou de governar a vida.

Todas as manhãs, quando o sol ainda se despede da noite, eles caminham à beira-mar, com os pés descalços sentindo a textura da areia, num ritual de reconhecimento diário daquele espaço que aprenderam a chamar de lar. É uma rotina sem grandes emoções — mas há certa beleza em saber exatamente o que o dia reserva. Bosco carrega uma vara de pescar, mais pelo gesto que pela expectativa de pegar algo; Jair tem na cabeça um chapéu surrado e um sorriso de quem fez as pazes com o tempo.

Diferentes de Santiago, que enfrentava o mar como quem se põe contra um adversário poderoso, Bosco e Jair olham para o oceano como quem cumprimenta um amigo antigo. O mar é, para eles, um porto de calmaria, onde as ondas vêm e vão sem pressa, convidando à contemplação, à conversa, ao riso fácil.

Sentados à sombra, saboreando uma Devassa gelada, contam histórias do passado, algumas que já se tornaram quase folclóricas entre eles. Cada um tem seu papel nesse teatro íntimo. Jair com sua risada fácil, que ecoa ao longe, e Bosco com suas pausas dramáticas, como se fosse preparar o palco para a memória que virá. Juntos, tecem um tecido de lembranças, entrelaçando o que viveram e o que gostariam de ter vivido.

Quando o sol se põe, despontando uma aquarela de tons alaranjados no céu, eles recolhem suas coisas, prontos para o caminho de volta. Nada de grandioso aconteceu — e essa é a beleza. Não se luta mais contra o tempo ou o mar; agora, é uma convivência pacífica, onde cada onda, cada brisa, reforça a certeza de que eles não precisam mais vencer o oceano. Estão, finalmente, em paz com ele e consigo mesmos.

Jamais serão lembrados como velhos que conversavam com o mar, não para conquistá-lo, mas para fazer parte dele. O oceano, em troca, os acolhe, guardando as pegadas que ficam na areia e as histórias que transferem para quem os vê, os ouve. Também ao contrário de Santiago, aqui conto um conto sem aumentar um ponto. Na sexta, 29, Bosco e Jair compartilharam no jantar o mesmo prato: uma pereroba, com pouco mais de dois quilos, retirada das águas após uma longa luta onde as armas foram o anzol e a vontade de vencer.

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