Com uma versão açucarada e polida de uma bossa nova pop, ela deu seu primeiro passo. Depois, no segundo, travou o outro flanco com uma canção de pista de refrão pegajoso. Apostou, então, num reggaeton bem caliente: “Xeque”, disse Anitta. Armou a isca, preparou a armadilha. Na última segunda-feira, 18, veio o xeque-mate. Com um funk, sua raiz sonora, injetado da viciante batida do trap, uma participação gringa e os já conhecidos versos em ascensão antes do refrão, Anitta deu sua volta ao mundo.
Chamou a atenção dos mercados do exterior (o foco era o público norte-americano e latino) com gêneros mais palatáveis ao gosto do público estrangeiro, jogou o jogo do pop, e voltou ao Morro do Vidigal, favela da zona sul do Rio, onde foi gravado o clipe de Vai Malandra, o quarto e último passo do projeto Check Mate, uma iniciativa de lançar quatro videoclipes de músicas inéditas, um por mês.
Os números estão aí para comprovar o acerto. O videoclipe de Vai Malandra se tornou, em dez horas, o melhor lançamento brasileiro da história do YouTube, com 7,8 milhões de visualizações. Nem mesmo as acusações de assédio sexual contra o diretor do clipe Terry Richardson foram capazes de barrar a avalanche virtual da chegada do vídeo – Anitta, ao saber dos casos contra o também fotógrafo emitiu um comunicado no qual informava que seguiria com o lançamento de Vai Malandra em respeito à comunidade de moradores do Vidigal, que participam ativamente no projeto.
Na parada de músicas mais tocadas no serviço de streaming Spotify – hoje mais importante e significativo do que os números de vendas de discos -, Anitta conseguiu emplacar Vai Malandra entre as 50 mais executadas em menos de 24 horas de lançamento. A música, na 49ª posição, se junta a Downtown, a terceira faixa do projeto Check Mate (aquela do reggaeton caliente do início do texto), com participação do colombiano J Balvin, que figura na 26ª posição. Números colhidos às 17h30 de terça, 19.
O lance é mais do que marqueteiramente genial – embora seja importante reforçar que nada foi feito sem o auxílio de um incontável número de marcas, apoiadores, cifras e todos os integrantes da atual máquina do mercado fonográfico de massas. E tudo vem de um interesse pela internacionalização da imagem da cantora, de nome Larissa, de 24 anos, e vinda da zona norte do Rio.
É, obviamente, fruto de um olhar atento ao mercado internacional, cujo apreço pela música latina ganha força e coroou Despacito (hit de Luis Fonsi, relançado com participação de Justin Bieber). Com a libidinosa Paradinha e a empoderada Sua Cara (uma música em parceria com Pabllo Vittar e o supergrupo de produtores Major Lazer), Anitta percebeu que havia espaço para si lá fora. Investiu em aulas de inglês e fez um tour pelos veículos de imprensa norte-americanos.
No Check Mate, lançou a baladinha água com açúcar Will I See You, uma bossa nova repaginada, como se dissesse “sim, sou brasileira”. Na sequência, mostrou saber do que é feito o pop de pista, com Is That For Me, uma parceria com o DJ e rei das baladas Alesso. Por fim, já “apresentada”, se juntou a J Balvin, dono do hit Mi Gente, música sucessora de Despacito no gosto norte-americano, para Downtown, com título em inglês e letra cantada em espanhol.
Vai Malandra é, no entanto, um inteligente resgate. É a música mais funk que Anitta lança em anos – é bom lembrar que a guria estourou justamente por ser adepta da estética mais leve, com a polidez do pop estrangeiro e coreografias decoráveis. Na nova música, a Anitta deixou o polimento. Percebeu, com sagacidade, como é o oposto que fará dela única no mercado internacional. A abertura ao funk brasileiro é tão escancarada hoje que o hit Bum Bum Tam Tam, criado quase artesanalmente por MC Fioti, foi levado para o mercado norte-americano em um remix com o rapper Future e o “arroz de festa” J Balvin.
Hoje, isso é claro, mas duas semanas atrás, seria impossível pensar no funk dos bailes de periferia e dos morros numa lista de mais tocados de âmbito global. Com a produção do Tropkillaz (formado pelos DJs e produtores André Laudz e Zé Gonzales), Anitta levou o funk do Mc Zaac (o vozeirão grave e cheio da malemolência do malandro carioca moderno) para uma aproximação com o trap, ritmo derivado do rap de batidas mais vagarosas e graves, em alta entre os nomões do hip-hop dos EUA. Com isso, Vai Malandra tem o funk do morro, o trap dos gringos e o pop dela, que faz apenas a ponte para o refrão libertino. É o bom faro aliado ao talento de digerir sonoridades e transformá-las em canções prontinhas para as altas rotações (nas rádios e no mundo do streaming). Num cenário carioquíssimo, nas lajes, nas vielas e na imperfeição do Vidigal, Anitta faz funk para o gringo ver. É xeque-mate.