Faz dois ou três meses, com palavras, vírgulas e exclamações próprias, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luiz Roberto Barroso, afirmou que um presidente será eleito normalmente em 2022. “Eleição vai haver, eu garanto”, disse, em resposta a uma das muitas ameaças de Bolsonaro. Amedrontados pela ferocidade das lives presidenciais e, principalmente, por conta dos despachos com apoiadores no gabinete do cercadinho, poucos acreditaram. Na verdade, a maioria queria acreditar, mas o medo havia corroído a esperança. Àquela época, a tese de ruptura era apenas um filme em fase de edição. O lançamento ocorreria no Sete de Setembro, Dia da Independência de todos os brasileiros. Acho que essa foi a primeira falha no enredo da fita.
Esqueceram de combinar com os russos que o motim estava em andamento e que era para ser lançado naquela data. O segundo erro foi a pouca de divulgação para a avant première. Faltou público e a película fundamentalmente golpista, sem civismo algum, acabou sendo um retumbante fracasso. E não adianta mais parte dos integrantes da grife política chamada Bolsonaro pedir um voto de confiança para o pai, afirmando haver um “acordo por trás” do arrependimento público. Pode ser. Na verdade, como não acredito na “Declaração à Nação”, acho que teremos novos capítulos da quixotesca novela O homem que não largar o osso. De qualquer maneira, o recuo – arrego para os pessimistas – requer uma rápida e precisa avaliação psiquiátrica.
Quando se fala em rebelião, obviamente a intenção é golpear alguém ou alguma coisa. No caso em questão, a intenção golpista do presidente era (ou é) contra quem? O melancólico desfecho mostrou que ele foi protagonista e antagonista da ação. Coisa de doido, mas o feitiço mal feito caiu no colo do aprendiz de feiticeiro. Enquanto o palco está fechado, o mundo inteiro sabia que um dia a corda iria arrebentar. Esticaram tanto que arrebentou bem antes do que imaginavam os mais otimistas dos mortais. É claro que os brasileiros alienígenas esperavam sair do Sete de Setembro com a coroação do Jair imperador golpista da República Bolsonarista do Brasil. São aqueles que só estão preocupados com o próprio umbigo. Sorte que os autodenominados patriotas não representam sequer um terço dos 213,3 milhões de nativos.
É a turba que, a exemplo do mito que idolatram, é golpista, homofóbica e misógina. Como são poucos, colocaram nas ruas de Brasília e de São Paulo pouco mais do que uma torcida de futebol de várzea. Perderam a grande oportunidade do silêncio oculto e da resignação com a insignificância pessoal. Como cidadão de bem, sou adepto da sábia filosofia de botequim de periferia: “Quem luta por um mundo melhor no mínimo se abstém”. Ou seja, na ausência de mote para eventual rebeldia, melhor ficar em casa. Quanto ao presidente da República, a cortina de fumaça sobre o voto impresso gerou uma nova derrota política: o pedido de desculpas. Restou a impressão, a divulgação e as várias certezas da tal declaração. Uma delas é a referência à bala de prata do governo que viria das ruas. A bomba não passou de um traque.
A outra é que os ataques aos ministros Luiz Roberto Barroso e Alexandre de Moraes nunca foram honestos. Eram apenas “força de expressão”. O sonho verdadeiro sempre foi o de se aconselhar diariamente com mestre Barrosão e com tio Xandão. Na ausência deles, o presidente se viu obrigado a convocar o ex-presidente Michel Temer e ofertar-lhe uma nova função. O ex-presidente dormiu com a capa de eterno mordomo de filme de terror e acordou na pele de Aconselhador-Geral da República. Nada de mais para quem vive do e para o achincalhe. Pouco antes do arrego, Barrosão, com a voz mansa de quem conhece seus detratores e sem tirar uma vírgula, denunciou o “farsante” ao país. Voz mansa, mas pulso firme. Foi assim que são Barroso ajudou Xandão a ajudar Temer a enquadrar o mito fanfarrão. Claro que ocorrerão novos mil e um ataques golpistas à nação.
A diferença daquele para os próximos lances é a presença de Xandão e Barrosão como beques de sobra na defesa brasileira. O day after não ficou limitado a 8 de setembro. Se estenderá pelo restante do mês e do mandato. O gato definitivamente subiu no telhado. Depois de meses governando pelo WhatsApp, o presidente da República tentou o último grito da ditadura contra a democracia. Encurralado dentro e fora do Brasil, conseguiu apenas a anarquia. O general Hamilton Mourão continua silenciosamente no aquecimento. Como no conto do Moleiro de Sans-Souci, imortalizado por François Andrieux, ainda há juízes em Berlim. Bons ou ruins, do outro lado da Praça dos Três Poderes existem magistrados prontos para agir contra déspotas parecidos com Frederico II.
Rei da Prússia (hoje Alemanha), Frederico estava incomodado com um moinho construído nas cercanias do palácio. O argumento era de que a edificação enfeiava a paisagem real. Determinado, o moleiro foi chamado para explicar ao monarca as razões da resistência. A resposta foi rápida: “Ainda há juízes em Berlim”. Diante da bravura do homem, Frederico desistiu da iniciativa. Contam que o moinho continua de pé. Da mesma forma, o Brasil permanecerá altivo e democrata. Teremos eleições livres e soberanas em outubro de 2022. O protocolo do TSE em breve estará aberto para receber inscrições de postulantes. Todos podem sonhar com a Presidência, inclusive os postulantes a rei da Prússia. A única condição é ter votos. Como cultuador de boas expressões e pensamentos, sejam épicos ou não, faço minha a nova frase de são Barrosão: ” A urna só é insegura para quem tem a vitória como único resultado”.