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Ídolos de barro

Brasil de hoje está fora do tempo da maioria dos brasileiros

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo

O modismo da vez no Brasil é cultuar mitos de barro e fabricar ídolos a partir das redes sociais, mesmo que eles não tenham história suficiente para encher uma uma folha de papel A4. Num país em que a quase totalidade da população surfa na moda da semana ou do mês, não custa lembrar que até Joaquim Roriz, Anthony Garotinho, Sérgio Cabral Filho e Pezão já foram divindades. Então, nada mais natural do que meia dúzia de brasileiros idolatrar o belo sorriso, simpatia e o humor de Jair Bolsonaro. Deixemos para outra oportunidade eventual análise sobre o trabalho árduo do capitão, que, como general de um exército único e fiel, preside a maior nação da América Latina, também conhecida como oitava economia do mundo. Acho que há tempos não é mais.

No entanto, para não desagradar o fetiche representativo de muitos dos conterrâneos, melhor não mexer com isso. Imagem é o que interessa. A verdade é que, duela a quien duela, nenhum brazuca moderno quer saber mais de Getúlio Vargas ou de Juscelino Kubitschek. Ouvir Roberto Carlos e Wanderley Cardoso é coisa de velho gagá. Os “monstros” sagrados da MPB hoje são são Anita, Wesley Safadão, Luan Santana, Ludmila e Pablo. Com algum sacrifício, a turma ainda é capaz de dar uma escutada em Cihtãozino e Xororó e Mamomas Assassinas. Ops! Esses já morreram. E viva la cueca-cuela. Estamos tão carentes de ídolos que, depois de Monteiro Lobato, Machado de Assis, Jorge Amado, Villa Lobos, Pelé, Garrincha, Zico, Ayrton Senna, Vinícius de Moraes e Tom Jobim, entre outros também importantes, elegemos Bolsonaro e o pernambucano Gil do Vigor como as divindades do momento.

Nada contra o rapaz, mas tudo a favor dos verdadeiros heróis, aqueles que sustentam cinco dez pessoas com salário mínimo e nunca conseguem um segundo de TV para tentar explicar o malabarismo salarial. Obviamente não estou incluído na conjugação do verbo eleger no pretérito perfeito simples. Por isso, o elegemos é apenas um exagero de linguagem. Prefiro o pretérito mais que perfeito: se eu tivesse elegido. Como não sou mestre em português, mais simples torcer para que passe rápido o desgosto de quem, como eu, pensou e votou diferente. Sem lenga lenga, quero consignar que, em um eventual e provável novo opúsculo, gostaria de registrar a trajetória de personalidades que deixaram marcas para a história. Que os ídolos de barro derretam antes do próximo dilúvio.

E não importa que sejam políticos ou figuras consideradas muito capacitadas, consequentemente boas, ou de reputação, competência e qualidade duvidosas. Serão avaliações da oportunidade. Entretanto, terão de representar determinados períodos, mostrar feitos – ou malfeitos – com alguma relevância e, de alguma forma, ter sido incluído, positiva ou negativamente, nos escritos do Wikipédia. Não tenho a discriminação como modelo de escolhas, mas empatia, positividade, receptividade e eloquência serão quesitos que merecerão nota 10. Os demais ficarão limitados a verbetes. Entre os brasileiros deste e do século passado, tentarei encontrar um ser “imortal” como a Rainha Elizabeth II.

A eterna rainha enterrou oito presidentes dos Estados Unidos, participou do funeral de cinco papas, acompanhou o nascimento e morte de Elvis Presley (o Rei do Rock), vibrou com o início e chorou o fim dos Beatles, torceu o nariz quando levantaram e soltou fogos quando derrubaram o muro de Berlim, viu a chegada do homem à Lua, sobreviveu a três pandemias e a uma guerra mundial, condecorou e enterrou o primeiro 007 (Sean Conery), além de muitos etceteras. Na lista de grandes frustrações da sempre rainha, certamente eu incluiria o fato de ela nunca ter encontrado – lá ou cá – o presidente do Brasil. Ainda há tempo.

Sobre meu opúsculo, melhor não pensar em uma produção bibliográfica com nomes. Seria desnecessário, por exemplo, dizer que convivi com um cometa, o capitão Jair Bolsonaro, cujo perfil realmente é de um asteroide perdido no espaço. Mais interessante é aproveitar a oportunidade para lembrar a época em que o povo enchia as ruas, praças e avenidas públicas do país com objetivos concretos e verdadeiros. O período negro exigia protestos contra algo que realmente incomodava. Hoje, que vivemos uma “democracia plena’, é patético perceber que parte do eleitorado tenta eventualmente lotar festivamente a Esplanada dos Ministérios e as vias litorâneas com um único pretexto: ameaçar essa mesma democracia que custamos tanto a conquistar.

Pra não dizer que não falei das flores, lembro que a desesperança está apenas na fumaça dos tanques que “desfilam” para o presidente do país que em um dia de um passado recente foi respeitado e querido em todo o planeta. Ainda bem que a Alegria, Alegria permanece nos corações de boa parte do povo brasileiro, que continua preferindo o Clube da Esquina aos porões do masoquismo, a MPB dos festivais e das composições da alma às músicas produzidas em fritadeiras de pastel com óleo saturado. Definitivamente, o Brasil de hoje está fora do tempo da maioria do brasileiro.

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