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Brasil de Lula precisa lutar pela paz e rejeitar falácia EUA-Otan

Como é sabido, a Assembleia Geral da ONU aprovou, recentemente (por 141 votos a favor, 7 contrários e 32 abstenções), uma resolução condenatória do ataque russo à Ucrânia, resolução essa que contou com o voto favorável do Brasil. Destaco duas questões que devem ser vistas de per si: a repreensão à Rússia, a que o Brasil não poderia furtar-se, e o texto maniqueísta e guerreiro aprovado, que o Brasil não deveria subscrever, porque o governo do presidente Lula está comprometido com a tarefa de retomar os bons tempos de ator internacional, exercendo a política que o ex-chanceler Celso Amorim muito bem cunhou como “ativa e altiva”, dando ação e consequência, com o concurso de Marco Aurélio Garcia e Samuel Pinheiro Guimarães, às formulações de Afonso Arinos de Mello Franco e, principalmente, de San Tiago Dantas.

Muito do que se consagrou como “política externa independente” a partir dos anos 1960, e que se tornou o principal marco de referência da atuação brasileira no cenário global, se deve à sua visão de raro estadista. Infelizmente, os governos progressistas não lograram a adesão da caserna, que permanece hipnotizada pela finada Guerra Fria, tornada dinossauro insepulto após a debacle da União Soviética, e devota do alinhamento automático ao Pentágono, reacionarismo perigoso se considerarmos a conjuntura em construção e os desafios que implica.

De outra parte, governos e partidos fugiram do debate pedagógico com a sociedade, assim contribuindo para sua despolitização, de que o quadro presente – por exemplo, a emergência da extrema-direita – é uma das implicações. Novamente é entregue a Lula a missão de retomar uma política externa condicionada pelo interesse nacional, uma vez mais ignorada ou combatida pelas fileiras (impermeáveis ao diálogo inteligente) e pelos herdeiros da casa-grande, cujos interesses estão mais próximos de Wall Street do que de Brasília. Pela segunda vez, o processo histórico chama o PT para o debate ideológico. Que não seja mais uma oportunidade perdida.

Não cabe discutir a censura que a comunidade internacional deve à agressão russa, sem dúvida grave violação do direito internacional, mas sim o apoio que o Brasil emprestou a texto que, por simplesmente atender à estratégia de guerra dos EUA e, por consequência, da Otan, trabalha na contramão do armistício pelo qual nossa diplomacia claramente se bate, como devedora de uma tradição de luta pela paz e pela solução pacífica dos conflitos que, com conhecidos e lamentáveis lapsos, se confunde com a história do Itamaraty.

Ora, o Brasil, além de defender uma “paz imediata e duradoura”, se propunha, pelo discurso de nosso presidente, a dar um passo à frente e apresentar-se como o negociador confiável que pode ser em face de nossas reconhecidas boas relações com as partes, ou seja, com a Rússia e a Ucrânia, neste caso evidentemente conversando com os EUA. Ademais dessa capacidade de diálogo, a que chega credenciado pela sua liderança na América do Sul, o Brasil tem manifesto interesse, econômico e político-estratégico, em estreitar cooperação econômica com seu principal parceiro comercial, a China, a outra margem no duopólio de potências entre as quais navegamos – e de quem, em boa medida, depende a Rússia, na guerra e no seu após, que não se pode afirmar qual seja, pois todas as hipóteses estão na mesa, inclusive o armagedon que aos falcões do Pentágono parece inevitável, como última tentativa de salvar a hegemonia estadunidense.

Eis por que o conflito europeu fez-se etapa necessária, que ainda não se completou, e está atrelado a uma disputa de impérios. Nele o Brasil não tem interesses diretos envolvidos, senão a ciência de suas graves consequências para a humanidade, com o alastramento de um conflito que, pensado como uma blitzkrieg, apaga hoje a primeira vela de seu amargo bolo de aniversário.

Na contramão da paz, que o Brasil persegue, a declaração da ONU, que o Brasil apoia, faz o jogo da guerra. Já agora, EUA e Otan, que alimentam o conflito com injeção de recursos financeiros, apoio logístico e o fornecimento em ritmo avassalador de armamentos cada vez mais sofisticados e letais –tanques, sistemas de defesa, drones e armas de longo alcance – admitem o envio à Ucrânia de aviões-caças de última geração, com capacidade de atacar o território russo. O objetivo é claro: aprofundar e prorrogar a guerra; portanto é cínica a declaração da ONU quando fala em armistício com a retirada de campo de um dos litigantes, fazendo tábula rasa da presença da Otan. Os EUA, agora, politicamente amparados em resolução da AGNU, caminham a passos largos para ultrapassar a fronteira da guerra convencional, preço que se dispõem a pagar se essa for a condição para anular o arsenal nuclear russo e concertar a “santa aliança” do ocidente contra a China, seu inimigo de vida e morte.

Os riscos são já agora percebidos até mesmo pela engajada imprensa brasileira. O jornalista Roberto Godoy, especialista do Estadão (1º/03/2023), adverte: “Se passarem os caças, a próxima etapa seria uma guerra total, de EUA e Otan contra Rússia, ou o uso de uma arma tática nuclear, o que seria arriscado, porque não sabemos o tamanho da resposta.”

Parece contraditório, pois, defendermos a paz e ao mesmo tempo nos associarmos à estratégia belicosa do militarismo estadunidense que, consabidamente, depende do conflito (de que foi agente) para salvar a hegemonia que a emergência econômica, militar e política da China põe em questão. É evidente contrassenso nos oferecermos como condutores do “cachimbo da paz” e ao mesmo tempo nos associarmos à geopolítica daquele que de fato é o mais poderoso dos beligerantes, e que da continuidade do conflito depende para, em operação conjugada, consolidar sua preeminência sobre a fragilizada União Europeia e aprofundar o cerco à tríade China, Rússia e Irã.

Se o adversário estratégico é a China, o primeiro alvo é a Rússia, emergente da debacle da URSS como segunda potência nuclear do planeta. Esse arsenal, se a salvou do extermínio, pode, porém, decretar sua condenação. As razões da “guerra da Ucrânia” estão longe de suas aparências presentes. Os fatos vão tecendo as circunstâncias: sob cerco, não resta ao Kremlin qualquer saída fora de uma aliança quase subordinada à China, que, de sua parte, não dispõe de outra alternativa senão apoiar o aliado, porque precisa contar com seu arsenal nuclear, até para efeito de dissuasão das ameaças dos EUA, que não se alteram, seja presidente Bush, Clinton, Obama, Trump ou Biden.

Com esse voto a favor da declaração proposta pela Casa Branca, o Brasil optou por se isolar nos BRICS, aparentemente abdicando de uma desejada liderança logo quando anuncia a indicação da ex-presidente Dilma Rousseff para o comando da instituição financeira do bloco (Novo Banco do Desenvolvimento – NBD).

Em síntese: o sufrágio na ONU não foi uma boa jogada para quem reclama espaço próprio, autônomo, na ribalta internacional.

Evidentemente, o voto brasileiro não é um raio em céu azul: haverá a justificá-lo uma estratégia, até aqui não revelada, construída entre o aparentemente bem sucedido colóquio de Lula na Casa Branca e sua anunciada visita a Pequim– para a qual nossa diplomacia vem anunciando grandes expectativas, não só políticas, mas, de especial, na atração de vultosos investimentos, não ensejados seja pela União Europeia, seja pelos EUA. Lula e Xi Jinping também se encontram na comum defesa do acordo de livre-comércio China-Mercosul.

Os fatos mostram que a execução de uma política “ativa e altiva” mais depende de condições históricas objetivas do que da volição de estadistas voluntariosos. O quadro sobre o qual nos debruçamos – em que os mais pessimistas enxergam sombras anunciadoras de uma terceira guerra mundial em formato ainda inimaginável – guarda distância qualitativa daquele encontrado por Lula na gestão de seus dois primeiros mandatos. É bem mais estreita sua liberdade de movimento, hoje, e certamente ainda mais estreita o é em face daquela cujas circunstâncias ensejaram a vitoriosa política de Vargas no diálogo Berlim–Washington, que, ao fim e ao cabo, levou o Brasil a tomar a única decisão que podia, a de entrar na guerra ao lado dos “Aliados”.

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