No dia em que o Brasil alcançou novo recorde nos recordes da pandemia, com 1.910 mortos em 24 horas, o presidente da República, mais uma vez, sem ruborizar ou olhar de frente para o povo, se isentou de culpas. No contato diário com fanáticos apoiadores, Bolsonaro voltou a esquecer dos números, fantasiou sobre sua administração e praticou o esporte predileto: culpar alguém pelas mazelas do governo e do país. Novamente a imprensa foi a culpada da vez. Assustadores, esses números representam mais de uma morte por minuto. Absurdo? Claro que não. Apenas resultado do descaso e da inércia do governo federal e do desrespeito dos que negam a letalidade da Covid-19. Em conversa com apoiadores – o que faz de melhor -, o presidente chegou a indagar com ironia se era ele o vírus, acrescentando que, no que depender dele, o país jamais terá lockdown.
Claro que não devemos rotulá-lo de nada pejorativo. Entretanto, não há dúvida de que o governo pouco ou nada fez para alterar esse cenário cada vez mais fúnebre. Faltou – e falta – ao chefe do Executivo sensibilidade e humildade para, por exemplo, fechar com a maioria dos governadores que avaliam o isolamento social como única saída para controle das variantes da pandemia. Alguém precisa dizer ao presidente que ele não é o dono do mundo. É só um dos filhos. E dos mais rebeldes, porque não escuta os mais velhos ou quem entende das coisas. O resultado é o país cada vez mais próximo do inferno de Dante no item saúde e já na metade do abismo econômico, com um tombo em 2020 de 4,1% no PIB (soma de todos os bens e serviços finais produzidos por um país, estado ou cidade em um ano), o maior desde o início da série histórica do IBGE, iniciada em 1996. Bolsonaro comemorou, afirmando que, para aqueles que esperavam contração de 10%, o Brasil registrou uma das menores quedas do mundo.
Os dados comprovam isso. Ficamos à frente do Japão, Alemanha, Canadá, França, Reino Unido e Espanha, países ricos e com lastro financeiro. Além dessa diferença, também precisa ser pesado o auxílio emergencial, pago a mais de 65 milhões de brasileiros e que garantiu fôlego à economia nacional ano passado. A dúvida agora é saber quando estará à disposição e de quanto será a nova safra do auxílio. Até lá, as contas do presidente continuam sem bater com a realidade, principalmente no tema pandemia. Com a vacinação em ritmo lento e no pior momento da crise sanitária, a última indicação do capitão para tratamento da doença é um spray nasal produzido em Israel, que, a exemplo da cloroquina, não tem eficácia comprovada. Lamentavelmente, o povo desmemoriado virou cobaia dos experimentos presidenciais.
O mundo e o Brasil impõem imediatas medidas restritivas e pesadas multas para os que não usarem máscara, de modo a evitar ações mais duras no futuro. Nada disso sensibiliza Jair Bolsonaro, para quem o lockdown não deu certo em lugar algum e as máscaras não protegem ninguém. Mais um equívoco comprovado pelos números da Covid-19. A atualização da evolução diária da doença atesta que as maiores curvas de crescimento estão aqui e nos Estados Unidos. De acordo com os registros de hoje (4), são 10.718.630 de infectados e 259.271 óbitos. Na contramão do desacerto tupiniquim, o pesquisador e neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis diz temer uma catástrofe nacional. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Nicolelis deixou bem claro que, se nada for feito, podemos perder 500 mil nativos até abril. Lamentável, trágico, mas perfeitamente viável, considerando a lentidão do processo de imunização.
Naturalmente, o antagonismo e a falta de lógica dos dados e do receituário da Presidência da República puxam para baixo e derrubam a análise pessoal e funcional do capitão, que hoje convive com a pior avaliação informal de um presidente brasileiro em todos os tempos. Nem no período mais conturbado de sua administração, José Sarney experimentou tamanha contrariedade. Teve o ônibus apedrejado no Rio de Janeiro, mas deixou o Palácio do Planalto pela porta da frente e com apoio incondicional da turma do Centrão, que sustenta, mas não está inteiramente fechado com Bolsonaro. O adormecimento do gigante latino-americano e a falta de presas no mamute do Sul das Américas preocupa a maioria dos integrantes desse grupo. Embora dividido em setores, o circo tem uma única lona. Ou seja, em caso de incêndio morreremos todos.
De extrema gravidade, o momento é de encerrar a prosa, o oba oba e as brincadeirinhas no jardim do Alvorada. É imperativa a soma de esforços. Com raríssimas exceções – o médico goiano Ronaldo Caiado é uma delas -, os governadores já se colocaram à disposição. Culpar a imprensa diariamente pelas mazelas que ela não cria (apenas noticia) está fora de moda. O país está há 42 dias seguidos com média móvel acima de mil mortes e bem próximo do colapso sanitário e econômico. Presidente, aceite o fracasso no enfrentamento da pandemia. Como já escreveram alguns blogueiros e colunistas, o dia que sua excelência mudar de ramo ou de rumo, a imprensa imediatamente mudará de rota. Em outras palavras, governe e evite (hoje ou amanhã) o rótulo de presidente com p minúsculo.
*Mathuzalém Junior é jornalista desde 1978