A primavera chegou com a perspectiva de alguma chuva para amenizar o sofrido solo brasileiro. Melhor é ter a certeza de que uma chuvinha qualquer também servirá para lavar e enxaguar as mágoas de um povo que não aguenta mais tanto besteirol verborrágico do líder e de sua trupe. Para minha sorte, trata-se do presidente daquele país de um mundo tão tão distante. Nunca do meu. Copiando literalmente um velho amigo jornalista, estou pasmo com minha ignorância, pois, após algumas décadas de vida, percebi que habito um paraíso terrestre chamado Brasil. Na verdade, orgulho-me de tornar pública minha vergonha por ter, um dia, lamentado a escolha de parte do eleitorado nacional. Dou a mão à palmatória.
Vivo num país lindo, maravilhoso, sem problemas, sem comunismo, com uma economia pujante, um povo alegre, tolerante, unido, feliz e torcendo pela reeleição do maior presidente da história da terra descoberta por Cabral. Que alegria poder falar do meu país, onde se plantando tudo dá, onde tudo é verde, bom e justo. Sou ufanista com a certeza de que meu patriotismo golpista é para o bem de todos e felicidade geral da nação. Que venham os investimentos externos. Não precisamos deles, mas podem servir para que compremos com mais rapidez novos carregamentos de ivermectinas e hidroxicloroquinas, de modo a darmos uma banana para a ciência e controlarmos uma tal de Covid que, estamos certos, jamais passará de uma gripezinha.
Nós somos bons em tudo e não será um vírus qualquer inventado pelos chineses mequetrefes que vai tirar o Brasil dessa caminhada rumo ao sucesso, à solidez econômica e, porque não dizer, à consolidação de uma democracia que nunca esteve ameaçada. Falei demais? Sonhei desmedidamente? Ou será que menti descaradamente? Acho que imaginei um país dos quadrinhos, mas, felizmente, não imaginei sozinho. O presidente do meu país – descobri a tempo que habitamos o mesmo quadradinho – me fez pensar assim. Minha imaginação é fruto do que ouvi na terça-feira (21), logo na abertura da 76ª Assembleia-Geral da ONU.
Predestinado e cobrando reconhecimento internacional, o mandatário do bananal brasileiro precisou de pouco mais de dez minutos para reescrever uma história de quase 522 anos. Recebeu muitos aplausos e louvores de pessoas que estudaram, mas, pelo visto, não se aculturaram. Um deles, que fez questão de se apresentar como engenheiro civil, afirmou que “Bolsonaro não governará nem indicará rumos por meio de discursos eloquentes, retórica brilhante ou embromação de longas palavras”. Esquecendo que o mito está isolado, abandonado e enrolado em suas próprias mentiras, o moço acrescentou que Bolsonaro “governará com a mais poderosa forma de liderança que o mundo conhece: o exemplo e a verdade”.
Considerando a mentirada dita no plenário da ONU para sua base eleitoral, conforme ministros que compuseram a comitiva presidencial, permito-me duas indagações. Que verdades? Que base eleitoral é essa em que 69% dos brasileiros são favoráveis ao impeachment. Realmente o país de que falo não é o nosso. É o da fantasia de meia dúzia de duendes travestidos de eleitores. É o país do conto de fadas, da manipulação da realidade. Parece que sacudimos a árvore do povo esquisito e todos se esborracharam no chão. Obviamente não é o Brasil de 15 milhões de desempregados, de 20 milhões de pessoas à beira da miséria absoluta e de 592,3 mil mortos pela Covid-19. Não pode ser o país das rachadinhas na Assembleia e na Câmara Municipal do Rio de Janeiro ou no qual o excesso de professores atrapalhou o presidente em sua caminhada educacional.
Como diz João Bosco, “na idade em que estou aparecem os tiques, as manias”. Por isso, a exemplo de milhares de compatriotas, tenho vergonha. Às vezes, penso que não vou conseguir. Já pensei até em desistir, em sumir. Todavia, lembro novamente de João Bosco e imagino o próximo setembro chegando. Será véspera de outubro de 2022, mês do retorno à saudável realidade. E, “se Vênus me ajudar, virá alguém. E só de imaginar me dá vertigem”. Morro antecipadamente de medo só de pensar na repetição do vexame de Nova York. Queria que não fosse o presidente do meu país se apresentando à ONU como um prefeito de um pequeno município do interior. Pior foi vê-lo botando o Brasil para jantar pizza em uma calçada qualquer da cidade. A “turnê” lembrou mais um daqueles passeios de moto, helicóptero, jet ski ou cavalo. Tudo bem provinciano. Por isso, além de pária, viramos chacota mundial.
Dia desses, amanhecemos como pinóquios no metrô nova-yorkino, com y e k, conforme o novo acordo ortográfico. Parafraseando o imortal Sérgio Porto, Stanislaw Ponte Preta para os bem humorados, doeu na pele e na alma. Não é demais também lembrar o igualmente jornalista Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly. Conhecido pelo falso título de nobreza de Barão de Itararé, Apparício um dia cunhou essa pérola: “Não é triste mudar de ideias; triste é não ter ideias para mudar”. Atualizemos a frase e lembremos que temos armas não letais para mudar. Basta que usemos a combinação da consciência no dia combinado. O buraco em que nos encontramos é grande, mas, por enquanto, ainda não há terra em cima. Salvemo-nos antes que as rachadinhas nos engulam de vez. Nos convençamos de que, no país do faz de conta, nem tudo que reluz é ouro.