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Demônios idolatrados

Brasil do faz de conta vive da farsa do mito

Publicado

Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

Alguém me disse uma vez que não existe tédio no Brasil de Jair Bolsonaro, um país de invejadas riquezas, muitos clichês, mas sem memória e que, com facilidade, transforma ídolos em demônios ou, mais facilmente, demônios em ídolos. Nossa história recente comprova todas essas afirmações. Mais do que isso, mostra a prodigalidade nacional em produzir mitos temporários, a maioria sem qualquer vínculo com a história da nação. Mesmo no Brasil do faz de conta, mitos não são forjados, muito menos ocupam vácuos. Eles também não morrem, mas deixam de estar entre nós apenas temporária e fisicamente.

São os casos de mortais imorríveis como Charles Chaplin, Juscelino Kubitschek, Elvis Presley, Michael Jackson, Martin Luther King, Irmã Dulce, Zumbi dos Palmares e Ayrton Senna. Entre os vivos, Pelé certamente está em todas as listas. Por enquanto, não há termo de comparação entre os citados e Jair Bolsonaro. Gostem ou não, a verdade é que ele nunca teve e não tem cacife para exigir tal denominação. Protagonizado por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana, o mito é uma crença sem fundamento.

Os mais generosos o tratam como lenda, que tem menos fundamento ainda. Ao pé da letra, mito (do grego mythós) é uma narrativa fantástica com objetivo de explicar a origem de tudo aquilo que existe e é considerado importante para um determinado povo. Repetindo, determinado povo, principalmente os de cultura politeísta (crença em muitos deuses). Está nos livros virtuais que, hoje em dia, o termo pode ser sinônimo de falsidade ou mentira. A oposição entre “verdade ou mito” é muito comum e ocorre pela tradição fantástica das histórias míticas e, principalmente, por sua falta de coerência com a realidade.

Ou seja, tudo a ver com a atualidade brasileira. Apolo (deus do sol), Prometeu, Afrodite, Pandora, Helena, Poseidon (deus dos mares) e os 12 titãs, entre eles Cronus e Atlas, fazem parte da mitologia grega e até hoje são venerados por segmentos da sociedade mundial. No Brasil de anteontem, de ontem e de hoje, variados grupos veneram ou idolatram, respeitosamente, símbolos ou imagens. Tudo dentro de um princípio lógico de religiosidade.

Saindo disso, vira fanatismo. Portanto, pessoas, notadamente as vivas, devem ser amadas, cultuadas, no máximo reverenciadas. Mais do que isso lembra teatro mambembe de polichinelo. Diferentes dos considerados mitos, os ídolos são naturais. Tipo clichês, os três últimos mitos brasileiros foram criados pelo imaginário da carente turba bolsonarista, que, sem entender conexão, flerta com Deus e o Diabo com relativa naturalidade. Um deles – o ex-juiz Sérgio Moro – teria extrapolado o limite de sua função de julgador, não resistiu ao primeiro paredão e foi defenestrado da disputa eleitoral antes mesmo da conclusão do julgamento do Supremo Tribunal Federal.

O outro – o próprio Bolsonaro – acreditou que tinha representatividade, montou estruturas dentro e fora do Planalto para cultuar a imagem e acabou – ou deve acabar – como começou: sem um bom dia dos condôminos. O terceiro “mito”, graças a uma discutida decisão judicial, ressurgiu das cinzas e mexeu no tabuleiro eleitoral. Saiu demonizado e retorna ao cenário político como vítima. Se alguém entende que nenhum deles foi forjado, também não deve afirmar que são absolutamente representativos, na medida em que protagonizaram ou protagonizam feitos, fatos e histórias questionáveis.

Em síntese, quem nada faz ou fez de forma equivocada não deve merecer referências de qualquer natureza. Se receberem, creditem os elogios ao fanatismo barato e desplugado da realidade. Pilhagens recentes protagonizadas por autoridades e empresários em estatais e os recordes diários de mortes decorrentes da falta de vacina no combate a um vírus silencioso e letal são a prova de que mito e farsa andam lado a lado. Tanto um quanto outro dependem exclusivamente do povo, que não deve se deixar levar por promessas, discursos. cânticos ou mantras desonestos e impatrióticos.

Mitos e farsas à parte, após o controle da pandemia, temos de controlar a alma e os corações, de modo a trazer o Brasil de volta à normalidade política, já que sabemos que a sanitária ainda levará décadas. Torçamos para que a futura competição não seja sinônimo de guerra, tampouco disputa de aventureiros, mitos ou deuses. Precisamos escolher entre o bom e o mau, o que sabe e o que não sabe. Não sei quem terá condição de ser candidato contra esse que vive para ser reeleito. Como disse recentemente Fernando Henrique Cardoso, se a disputa for apenas entre esse e aquele tenham certeza de que minha escolha será pelo menos pior. E esse (o menos o pior) ainda é aquele. Esse fala e escreve pior ainda. Por isso, deve ter escrito eu minto e entenderam eu sou mito.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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