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‘Brasil está plantando a raiz do negacionismo’

Semanas antes de Bolsonaro demitir o primeiro ministro da Saúde e demonstrar em uma reunião ministerial que enfrentar a pandemia não é sua prioridade, os governadores do Nordeste decidiram reunir um grupo de pesquisadores e cientistas renomados para ajudá-los a desenvolver estratégias de combate ao coronavírus.

Criado no fim de março, o comitê científico do Consórcio Nordeste é coordenado pelo médico Miguel Nicolelis, um dos neurocientistas mais célebres do Brasil e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade Duke, nos Estados Unidos.

Neste entrevista exclusiva, Nicolelis é categórico: para evitar que tenhamos centenas de milhares de óbitos no Brasil, está na hora de adotar medidas drásticas. Ele defende que o lockdown seja feito onde o número de casos está crescendo e a taxa de ocupação dos hospitais, acima de 80%.

Mas isso não significa simplesmente fechar tudo. Para ele, o Estado brasileiro tem que seguir o exemplo dos EUA e outros países, criando “um pacote efetivo de ajuda econômica ao cidadão que permita que as pessoas sobrevivam a um lockdown”.

Nicolelis detalha as estratégias recomendadas pelo comitê científico nordestino que podem ser replicadas em todo o Brasil e explica por que a negação da ciência ganhou força no país, promovida por mensagens que remetem a comportamentos primitivos, como a luta contra o inimigo e a defesa tribal contra uma ameaça externa. “Quando você apela para esse tipo de estereótipo, a racionalidade é engolida.”

Leia abaixo trechos da entrevista:

A Organização Mundial da Saúde já afirma que a América Latina é o epicentro da pandemia e que o Brasil é o país mais preocupante. Você já vinha afirmando há um tempo que o Brasil seria o novo epicentro. Por quê? Quais foram os principais fatores que nos trouxeram até aqui?

Eu comecei a falar isso em março, antes de o comitê ser criado, porque tanto no Carnaval como logo depois uma enxurrada de pessoas entrou pelos aeroportos internacionais, já que o então ministro da Justiça não usou da prerrogativa de fechar o espaço aéreo brasileiro no momento correto. A comprovação disso é que todos os grandes focos de invasão do coronavírus no Brasil são as cidades que recebem voos internacionais da Europa e dos Estados Unidos: São Paulo, Salvador, Recife, Natal, Fortaleza e Manaus. [Esses voos] trouxeram a semente que poderia ter sido evitada se os aeroportos internacionais e o espaço aéreo do Brasil tivessem sido fechados. Esse foi o primeiro fator.

O segundo foi, evidentemente, a completa falta de organização de uma resposta nacional, mesmo com o tempo que a China e outros países europeus ganharam tanto para os Estados Unidos quanto para o Brasil. A gente viu o que aconteceu em todos os países que fizeram troça do vírus – Itália, Inglaterra, Estados Unidos e Brasil estão pagando um preço terrível. A total falta de preparo científico e até intelectual desses governos contribuiu decisivamente para as catástrofes que eles já experimentaram e que estão experimentando na primeira onda.

Aí a gente começou a fazer os modelos matemáticos e ficou evidente que, depois dos Estados Unidos, o Brasil ia ser o epicentro. Agora, a dúvida é se nós vamos passar os Estados Unidos nessa primeira onda, e eu acho que nós vamos. Eu não tenho 100% de certeza, mas a sensação que dá é que, até setembro, outubro, a gente pode estar à frente dos Estados Unidos em número de óbitos – porque a subnotificação brasileira é gigantesca, provavelmente maior do que a americana, que também é grande.

Nós temos 3 milhões, provavelmente, a expectativa mínima é que temos dez vezes mais [casos do que o número confirmado].

Enquanto alguns estados discutem flexibilizar o isolamento social, na semana passada o comitê científico do Consórcio Nordeste recomendou o lockdown para mais cidades nordestinas. Você acha que está na hora de adotar esse isolamento social mais rigoroso no país inteiro?

Eu estou chegando a essa conclusão e estou vendo esse pensamento ganhando peso entre pessoas de várias regiões. Vi isso recentemente em propostas de pessoas no Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, só não posso revelar a fonte. Acredito que, com a evolução dos dados, é a nossa única chance nesse momento.

A doença começou como se fosse uma guerra: um exército inimigo que invadiu pela costa em pontos estratégicos, pelas cidades que eu já mencionei, e agora a interiorização está progredindo rapidamente pela malha rodoviária. Nós temos estudos mostrando claramente isso. E tem um número significativo de regiões no Nordeste e no Brasil que está ainda com um número pequeno de casos onde ainda dá para evitar [o aumento exponencial de casos] se você puser um exército de médicos, agentes de saúde, enfermeiros, indo de casa em casa nessas localidades, para caçar os casos, isolar as pessoas, impedir a multiplicação de casos. [Se adotássemos essa estratégia] casada com o lockdown ordenado nacional, nós teríamos uma chance.

Porque você só precisa ver a taxa de mortes diária aumentando. As pessoas ficaram chocadas ontem [21 de maio] com 1.188 mortes, mas esse recorde não vai ficar aí, está absolutamente claro. O número de mortes diárias no Brasil vai subir dramaticamente, e nós vamos correr um risco dramático de colapso dos sistemas de saúde e dos sistemas funerários no país inteiro. O que aconteceu em Manaus não é um caso isolado, pode se transformar num caso generalizado. As pessoas não conseguem entender a dimensão do que nós estamos passando.

A decisão de decretar o lockdown deve ser tomada com base no critério do comitê: “curva ascendente de casos e óbitos e ocupação de leitos de UTIs e/ou enfermarias superior a 80%”?

Sim. Esse critério foi adotado porque ele permite que o gestor tenha tempo de reagir. Com 80% dos leitos ocupados, a expectativa é que você ainda tenha dois ou três dias para a ocupação plena. Nós estamos vendo isso: quando você chega a 80%, se não há nenhum plano de criação de novos leitos, a ocupação vai rapidamente para mais de 95%. Esse fato mostra quão importante é atacar o vírus onde ele nos ataca, nas trincheiras, nos bairros, nas casas.

O comitê científico defende que a interiorização da doença seja combatida com essas brigadas emergenciais, formadas por profissionais de saúde da família, que vão até as casas, testam os doentes e monitoram o contato com outras pessoas. Essa medida já está em atividade no Maranhão e no Piauí, certo? Quais são os principais entraves para a criação dessas brigadas em outros estados?

Você tem que levar em conta que vivemos em um país altamente burocrático, com níveis e níveis de burocracia e níveis e níveis de lobbies corporativos que são realmente inacreditáveis. O Maranhão já tem o seu decreto para recrutar médicos e fazer a revalidação de diplomas de médicos brasileiros que se graduaram no exterior. O Piauí já soltou o seu decreto de criação de brigadas e está para soltar o seu decreto de revalidação de diplomas. Nós acabamos de receber a notícia de que os conselhos universitários de três universidades estaduais da Bahia aprovaram a participação, em um programa de revalidação, de diplomas em nível estadual, mas que ainda precisa ser criado. E o decreto criando as brigadas da Bahia já existe e está à espera da assinatura do governador. Em diferentes estados, você tem diferentes realidades porque a máquina estatal burocrática funciona em diferentes tempos. Nós somos um conselho consultivo, nós recomendamos e fazemos sugestões, mas nós não operamos.

Como implementar essa estratégia em um país de dimensões continentais como o Brasil? Por que ela seria eficiente?

É um processo distribuído. Tudo que eu faço na minha vida profissional e científica se baseia no conceito de processamento distribuído. É como o cérebro humano funciona: quando o cérebro humano precisa resolver um problema complexo, ele divide a tarefa por bilhões de neurônios que contribuem, cada um, com uma parte pequena, mas que, no todo, realiza a tarefa.

A ideia aqui é a seguinte: você tem o Monitora, que é um aplicativo que te dá em tempo real onde estão os casos suspeitos. Com esses mapas, um grupo muito pequeno de pessoas pode ir nas vizinhanças, casa a casa, testando as pessoas, fazendo uma anamnese mais profunda, examinando e vendo se essa pessoa realmente tem coronavírus. E aí você pode fazer as recomendações, instruir como ela tem que se comportar, como tem que ser tratada, levá-la para o hospital se precisar, disponibilizar oxímetros, telefones celulares para elas poderem se comunicar com a telemedicina nos cinco estados onde ela existe no Nordeste.

Esta estratégia não é só para o Nordeste, ela pode ser usada em qualquer lugar do Brasil, porque você pode usar os agentes da saúde da família para capilarizar. Então você tem um grande exército dormente que não foi priorizado na estratégia brasileira de combate. Os Estados Unidos não têm esse exército, mas nós temos.

Se você divide a tarefa em pequenas equipes que vão em bairros nas periferias e em diferentes municípios, você começa a reduzir os casos que vão ter que migrar para os hospitais e UTIs e precisar de ventiladores, por exemplo. É uma estratégia distribuída reconhecida em todo o mundo por ser efetiva.

É uma estratégia de prevenção, que foi o que não fizemos até agora.

É mais do que prevenção. É prevenção e cuidados primários iniciais porque, se você pegar [os casos da doença] cedo, você vai evitar que muitos casos compliquem. E aí você diminui a demanda por UTIs e por equipamentos que não estão mais disponíveis no mundo. Isso é vital. Nós fizemos a recomendação para o Nordeste, mas essa estratégia está sendo adotada e estão aparecendo brigadas espontâneas pelo Brasil, sem nenhuma coordenação, porque a ideia é lógica, reconhecida e dá resultados. O Piauí fez um estudo-piloto para ver o casamento do Monitora com uma equipe de saúde local, e em dois dias eles descobriram cem casos que não estavam contabilizados. E aí o governador do Piauí falou pra mim: “Nossa, temos a prova de que a sua ideia funciona”.

Para esclarecer, esse “grande exército dormente” são as equipes de saúde da família?

São os profissionais de saúde da família somados a um número estimado de 15 a 18 mil médicos brasileiros que têm diploma e registro no exterior, que poderiam dobrar o efetivo médico de saúde da família do Nordeste, que é por volta de 15 mil. E tem um outro contingente que são médicos estrangeiros que estão aqui, que fizeram parte do Mais Médicos e que poderiam também ser recrutados.

Além da dificuldade para revalidar os diplomas, por que está sendo difícil recrutar essas pessoas?

Está sendo difícil, evidentemente, porque existe a resistência de certas corporações médicas, como o Conselho Federal de Medicina. Esse entrave corporativo não tem lógica nenhuma, nós estamos em uma situação de guerra. Com o Brasil sendo invadido, como está sendo, você tem que usar todos os recursos disponíveis. E quem diz que um médico formado em Buenos Aires, no Porto, em Madri ou na Alemanha, e registrado para praticar medicina nestes lugares, por que ele não pode praticar medicina aqui? Ainda mais numa situação de emergência. É você desprezar a necessidade de salvar vidas e manter um dogma corporativo como sendo divino, acima de qualquer lógica e racionalidade. Eu nunca vou aceitar um negócio desse.

Além disso, o fato de não termos tido um comando central nacional desde o início cria entraves terríveis, porque você não tem um Ministério da Saúde pensando estrategicamente. E os erros vêm desde o começo, vêm desde o problema de reagir tardiamente, não é de agora. Eu não abro exceção para os ministros que estavam lá antes. Para mim, ninguém virou herói depois que saiu do governo.

O Brasil está combatendo a pandemia praticamente “no escuro”, com dados escassos e pouco confiáveis. No comitê científico montado pelo Consórcio Nordeste, vocês criaram estratégias para levantar casos em tempo real por meio de um aplicativo, unindo dados como malhas de trânsito e redes de UTI. Que informações preciosas vocês estão conseguindo extrair desse esforço?

Nós temos uma plataforma de colaboração, o Projeto Mandacaru, que está chegando a 2 mil pessoas de todas as áreas: biomédicos, físicos, matemáticos, cientistas de dados, cientistas da computação, sociólogos, economistas, antropólogos, psicólogos, especialistas em direitos humanos. E nós temos até um grupo de 200 artistas gráficos e digitais para criar as mensagens e tudo aquilo que é necessário para divulgar as ações do comitê. É importante caracterizar que a gente não está partindo de uma bolha científica para fazer nossas recomendações, a gente está olhando macroscopicamente em múltiplas dimensões.

Quando eu falo do lockdown nacional, não é uma proposta isolada de fechar tudo e pronto. Não, ela vem regida e sustentada por outras políticas que exigiriam que o Estado brasileiro fizesse o que o Estado americano e outros países estão fazendo: um pacote efetivo de ajuda econômica ao cidadão que permite que as pessoas sobrevivam a um lockdown.

Se os Estados Unidos mandaram US$ 1.200 para todas as pessoas com renda abaixo de US$ 90 mil e vão mandar de novo, se já colocaram quase três PIBs do Brasil na economia americana para manter o país vivo, por que o Brasil não faz a mesma coisa? O problema é que, se a gente não fizer uma coisa drástica como essa nesse momento, corremos o risco de ter centenas de milhares de óbitos no Brasil. Esse é o horizonte e essa é a prioridade: evitar essa catástrofe.

O que nós estamos fazendo, que é único, é que nós estamos coletando informações de múltiplas fontes que as pessoas nem imaginam. Por exemplo, na época em que estava difícil estimar o isolamento social, eu entrei em contato com o pessoal que coordena as estações sismográficas no Nordeste para ajudar – porque na Califórnia se mostrou que, se você pegar os sismógrafos e mostrar a atividade da vibração que é conhecida naturalmente por causa do movimento dos carros nas rodovias, você era capaz de estimar o isolamento social. Aí nós começamos a trabalhar com essa análise de fluxos rodoviários. Começamos a descobrir que rodovias têm os maiores fluxos em que dias da semana e como as pessoas estão usando essa malha rodoviária no meio da pandemia e por onde existe o espalhamento preferencial geográfico dos casos pela malha rodoviária. Estamos criando ferramentas baseadas em simulações e análises desse tipo para dizer para os governadores como é que eles podem atuar cirurgicamente interrompendo certos fluxos, em diferentes momentos da semana. Enfim, nós estamos criando um arsenal muito mais amplo, e essa oferta de diferentes ferramentas é vital porque nós estamos numa guerra desconhecida. Assim como o mundo todo.

Veja o que aconteceu com Milão: a resposta foi tardia, os caras fizeram mais ou menos o que o governo federal fez no Brasil no começo, e a Lombardia foi dizimada. Mas aí você olha para a Grécia, por exemplo, um país falido, com um sistema de saúde completamente destruído, e tem número ridículo de positivos, porque eles fecharam o país no segundo dia depois que o primeiro caso foi descoberto. Se você olha para os países ao redor do mar Negro, como Bulgária e Romênia, é a mesma coisa, porque os caras fecharam cedo.

Mas aqui no Brasil eu vejo depoimentos de gente das universidades que simplesmente negam o que a gente vê no mundo inteiro. O exemplo da cloroquina é claro: o mundo inteiro já jogou isso no lixo. Até nos Estados Unidos, que foi onde começou a loucura, já está saindo da pauta pela quantidade de estudos que disseram que não acontece nada, que não tem efeito nenhum em nenhuma fase da doença. E aqui a gente ainda tem que brigar.

Curiosamente, esse movimento negacionista da ciência e de tudo que é baseado no método científico não começou aqui, ele é importado dos Estados Unidos. Todavia, ele está ganhando raízes e uma dimensão aqui que pode torná-lo maior do que ele é lá. Nós não vamos ser só os campeões de óbitos e casos, provavelmente, daqui a pouco nós vamos ser conhecidos como o país que enraizou o negacionismo científico.

Aqui no Brasil estamos vendo essa negação da ciência, dos protocolos médicos, da pesquisa, enquanto no mundo inteiro as pessoas estão sentindo o quanto a falta de apoio à ciência afeta todos nós. Por que você acha que existe essa descrença na ciência aqui e que efeito ela tem?

Isso é um capítulo do meu livro que foi lançado nos Estados Unidos e será lançado no Brasil em breve. São vários componentes.

Primeiro, o grau de conhecimento científico no Brasil é mínimo ou quase nulo. Não existe o incentivo à educação científica, mesmo quando você tem projetos de sucesso que ganharam prêmios no exterior, como foi o nosso. Durante dez anos nós tivemos duas escolas de educação científica no Rio Grande do Norte e uma no sertão da Bahia, onde formamos 11 mil crianças. E, no governo Temer, o Ministério da Educação decidiu fechar as escolas porque não eram prioridade.

Aí você chega a uma situação trágica como essa, em que a vida das pessoas está em jogo, e as mensagens que são passadas – e os caras do outro lado são muito espertos, eles usam psicólogos e neurocientistas para preparar isso – estimulam e dão apoio aos estereótipos mais primitivos do cérebro humano. A luta contra o inimigo, seja ele quem for, a defesa tribal do seu grupo social contra uma ameaça externa. Há 80 anos, o nosso querido Jung já falava que, quando você apela para esse tipo de estereótipo, a racionalidade é engolida.

Outro dia, em uma audiência no Brasil, falaram que o médico vai poder prescrever [a cloroquina] porque o paciente vai ter um termo de consentimento. A minha resposta é: em que lugar do Brasil um paciente à beira da morte ou o seu parente vão conseguir questionar o que existe por trás do termo de consentimento? Como ele vai saber a visão oposta, de que essa droga pode matar?

Você já afirmou que o governo Jair Bolsonaro menosprezou a gravidade e deu uma resposta confusa e tardia para a pandemia. O que nós poderíamos ter feito e não fizemos quando ainda não tínhamos nenhum caso confirmado de Covid-19 no Brasil?

A gente poderia ter feito o que a Alemanha e a Coreia fizeram: se preparar, se armar de um número de testes alto, criar toda uma estrutura de proteção, comprar máscaras e mais equipamentos de proteção individual, injetar dinheiro no SUS três meses antes da coisa explodir, contratar mais médicos, fazer um acordo tecnológico preferencial com a China, que na época tinha ainda estoque [de equipamentos] para vender – que foram vendidos para os Estados Unidos. Nós bobeamos. Poderia preparar a sociedade com uma campanha com uma mensagem clara alertando sobre o que vinha e quais eram os riscos. Poderia ter criado um comitê científico nacional, com pessoas capacitadas, para analisar tudo isso que precisa ser feito e basicamente criar um Estado-Maior de guerra, que é o que você precisa para entrar num troço desses.

Você precisa se armar de todas as ferramentas tecnológicas e todos os recursos humanos possíveis e estabelecer contatos dentro e fora do país para você ter suporte. Ou seja, se comportar como um governo do século 21, e não do Paleolítico Superior.

Quando essa pandemia acabar, como o Brasil pode se preparar para que uma eventual nova pandemia não seja tão devastadora?

“Quando a pandemia acabar” é uma expressão que eu não uso porque eu não consigo ver esse horizonte nesse momento. Para ser honesto, eu não consigo nem ver o pico da primeira fase. Os nossos modelos, as projeções ainda não conseguem achar o pico. Não há a menor dúvida que vai ter uma segunda fase no mundo. Ela provavelmente já começou na China. Inclusive, os pesquisadores americanos já falam que o país precisa se preparar nos próximos três meses para a próxima fase, restabelecendo os estoques de material de saúde, de hospitais etc. – e a primeira fase ainda não acabou nos Estados Unidos. Eles provavelmente vão chegar a quase 200 mil mortos nessa primeira fase.

Porque o grande receio de todo mundo agora é quão mais ou menos letal vai ser a segunda onda, já que o vírus está em constante mutação. Se a gente der sorte, ele pode mutar para um formato pouco adequado e sumir, como aconteceu com a primeira Sars e com a síndrome respiratória do Oriente Médio. Ou ele pode vir mais letal numa segunda fase, como na influenza de 1918.

Esse é o problema, não se sabe como vai ser a segunda fase. O Brasil muito provavelmente ainda vai estar no meio desse imbróglio institucional e não vai ter nem como se preparar. A segunda fase no Brasil pode ocorrer agora no inverno junto com a primeira. A gente vai ter um “perfect storm”, uma tempestade perfeita no Brasil, que é a junção dos casos de coronavírus com os casos de dengue, chikungunya, gripe e outras coisas. É o “general inverno” que na história da humanidade ganhou todas as batalhas das quais participou. Se existe um general invencível na história das guerras da humanidade, é o “general inverno”, do Napoleão Bonaparte ao Átila – não o virologista, o real [risos].

Nos últimos anos, houve a PEC do teto de gastos e inúmeros cortes de gastos em saúde, em pesquisa, em universidades públicas. Como isso impactou a nossa resposta à pandemia?

A primeira lição da pandemia, que é uma lição global aprendida pelo mundo inteiro, é que todas as políticas macroeconômicas que foram usadas como desculpa para desinvestir na ciência e na saúde pública estão caindo por terra, estão sendo tratadas com escória porque elas causaram parte das mortes que nós temos.

A saúde pública e a ciência são as grandes esperanças do pós-pandemia. A nova ordem mundial que vai surgir leva em conta que essas coisas são prioridades.

Só no ano passado, o Sistema Único de Saúde perdeu mais R$ 20 bilhões – que é quase 20% do orçamento do SUS. E o SUS, nesse instante, é a única coisa que está segurando o Brasil: a capilaridade do SUS, a existência do SUS, os médicos e os funcionários do SUS. Porque nos Estados Unidos não tem SUS, e é por isso que eles estão chegando a 100 mil mortes nos próximos dias. E eu falo isso sem nenhum colorido político, sabendo que o vírus não tem nem política nem ideologia. Não tem cabimento, neste momento, falar de política, porque só deveria haver uma prioridade, que é minimizar o sofrimento humano do Brasil: reduzir o número de mortes, reduzir o número de casos e reduzir a fome das pessoas que não estão conseguindo sobreviver ao isolamento social.

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