Em 2002, quando saí da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), fui desenvolver uma Web Rádio no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Tudo que tinha era uma pesquisa sobre streaming – por ser próximo à tecnologia, consegui ver de perto a internet virar o mundo do avesso – e um interesse sobre o Brasil profundo, das novelas ao Cinema Novo. Minha ascendência nipônica, no entanto, fazia de mim um pequeno estrangeiro e não sabia muito bem como lidar com esse binômio irregular.
À primeira vista, fazer uma web rádio não parecia difícil, mas partir da Discoteca Pública Municipal foram outros quinhentos. A discoteca fundada por Mário de Andrade vai além do acervo: é, antes, uma ideia.
Imagine reunir em um mesmo lugar tudo aquilo que se compreendia sobre música até então: discos, registros, partituras, instrumentos, livros, rádio e pessoas. A ideia vai ficando melhor, o popular e o erudito são pensados em encontros, criam nós e fazem sentido como um projeto de cultura brasileira.
Depois de 10 anos trabalhando em uma instituição pública e contaminado pelo espírito “marioandradiano” de ser “trezentos-e-cincoenta”, penso que o Brasil precisa de Mário de Andrade mais do que nunca.
O país precisa do Mário professor de música, que se preocupou não apenas com os virtuoses, mas com a formação de pensadores como Oneyda Alvarenga, aluna e, depois, diretora da Discoteca Pública que Mário fundou em 1935.
Precisa do Mário pesquisador, que foi conhecer culturas do Brasil até então desconsiderado, do Norte e Nordeste, como relata em seu livro “O Turista Aprendiz”. Precisa do Mário artista, que construiu significados ao escrever “Macunaímas” e olhou com crítica e delicadeza a sociedade do verbo intransitivo.
Precisa do Mário servidor público, que arriscou seu nome consagrado ao executar e dirigir o primeiro departamento de cultura do Brasil num tempo que política pública era ser café com leite. Precisa do Mário amante de sua gente e de sua terra, do poeta que desejou ser enterrado por toda a cidade que tanto amou.
E por fim, precisa do Mário inovador, que viu na invenção o princípio e o fim, a solução e a diversão. Testemunhando a derrocada das culturas populares pelas cidades que cresciam, utilizou a tecnologia da época e registrou o que pode – como na Missão de Pesquisas Folclóricas. E ousou ir além ao projetar uma rádio-escola.
Assim como reinventou o futebol e a música, o Brasil precisa reinventar o Brasil. Vamos aproveitar o ingresso da obra de Mário de Andrade em domínio público, vamos nos inspirar no homem multifacetado, vamos procurar não nos definir só por aquilo que produzimos profissionalmente.
Vamos conhecer nossas gentes e terras, quem sabe aprendemos a amá-las desvairada e intransitivamente? Sejamos trezentos, sejamos “trezentos-e-cincoenta”.
Marcio Yonamine