Os vexames
Brasil sofre com offshores de Guedes e problema menstrual
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emO vexame do ministro da Economia, Paulo Guedes, que tem uma offshore em um paraíso fiscal – como revelaram os repórteres Allan de Abreu e Ana Clara Costa, da revista Piauí, no Pandora Papers -, é tão grande como a impunidade que se espera no seu caso. A decisão de Augusto Aras de “oficiar” o ministro nada significa: uma apuração preliminar sobre fato conhecido e exposto com documentação em diversos veículos jornalísticos, parece ter como única função enrolar para proteger o governo, característica da atuação de Aras na Procuradoria Geral da República.
Há dois motivos para autoridades, celebridades e empresários abrirem offshores em paraísos fiscais: escapar de impostos ou garantir o sigilo de bens e movimentações financeiras. Nenhuma delas combina com o papel de mandatário da área econômica de um país, do qual se exige transparência e distância de negócios que possam ser facilitados por ações e informações que sua condição permite regrar ou obter.
Um exemplo claro dessa mistura de interesses públicos e privados foi exposto nas reportagens sobre o caso: Guedes se uniu ao Congresso para derrubar a tributação de ganhos de capital no exterior e propôs uma brutal redução na alíquota de taxas sobre a repatriação de capitais – da faixa de 15 a 27,5% (varia conforme o volume de recursos) para apenas 6%. Ou seja, no mínimo Guedes infringiu o artigo 5o do Código de Conduta da Alta Administração Federal que proíbe funcionários de alto escalão de gerenciar bens que possam ser afetados por decisões do governo. Isso sem falar nos lucros de investimentos em dólar, cuja alta está relacionada à condução da economia, enquanto a população sofre com a inflação, o desemprego e a miséria.
Também não se pode esperar do requerimento do Congresso para que Guedes deponha em plenário nada além de um novo assalto aos cofres públicos. Como bem definiu a jornalista Maria Cristina Fernandes: “nada melhor para uma Câmara que quer destelhar o Orçamento do que ter um ministro da Economia na berlinda”. A ansiedade para explorar a oportunidade é tão grande que PP, PL e PSD, partidos da base do governo, orientaram as bancadas para votar a favor da convocação. Com certeza vão sobrar petardos para o ministro, que serão devidamente silenciados com negociações tão obscuras quanto aquelas feitas nos paraísos fiscais – ou no orçamento secreto.
Em meio a um escândalo que teria tudo para derrubar o ministro da Economia e o presidente do Banco Central – também dono de offshore, conforme demonstraram também os Pandora Papers – em um país democrático, o presidente Jair Bolsonaro voltou suas baterias não contra o ministro e o presidente do BC que nomeou. O alvo escolhido por ele é o mais vulnerável possível: as pessoas que sofrem com a pobreza menstrual.
Bolsonaro vetou a distribuição gratuita de absorventes para pessoas de baixa renda que menstruam com a absurda desculpa de que “ao estipular as beneficiárias específicas, a medida não se adequaria ao princípio da universalidade, da integralidade e da equidade no acesso à saúde do SUS”. A seguir a lógica do presidente, o SUS não poderia fazer partos ou vasectomia. Nenhum desses procedimentos é universal, ambos têm “beneficiárias ou beneficiários específicos”.
O princípio da “igualdade na diferença” é essencial para a garantia universal dos direitos humanos. Aliás, embora o projeto se refira a “mulheres e estudantes de baixa renda”, vale lembrar que há pessoas que menstruam que não se identificam como mulheres e que deveriam ter os mesmos direitos. O da dignidade e da garantia da saúde, ameaçada pela falta de higiene menstrual adequada.
Uma das coisas que mais me impressionou quando fiz várias visitas a um presídio feminino para uma reportagem, ainda nos anos 2000, foi exatamente a tristeza, o desconforto e a vergonha das mulheres pela falta de absorventes, vendidos a preços extorsivos no câmbio negro para as que podiam pagar, e substituídos até por miolo de pão na falta de alternativa.
Empatia, como sabemos, não é um atributo de Bolsonaro, mas ainda assim choca ver o abismo entre privilégios e vulnerabilidades que ele trabalha para aprofundar.
Já que não pretende impedir Bolsonaro, apesar dos pedidos de impeachment que se acumulam na Câmara, nem derrubar o ministro Guedes, o Congresso poderia pelo menos derrubar os vetos que marginalizam ainda mais as pessoas extremamente vulneráveis. Seria uma demonstração de que a crueldade ainda não se tornou cláusula pétrea nesse governo.