Buscava eu um tema para esta nossa conversa semanal quando Alex, um amigo querido, telefona para me parabenizar:
– Mestre, esse país será outro quando pudermos comemorar o “Dia do professor inesquecível” e o “Dia do presidente deslembrado”.
Pronto. Encontrei o que procurava. Agradeci. Decidi celebrar ambos os dias, recordando dois assaltos ocorridos na cidade do Rio, que me permitem formular uma pergunta singela: qual a melhor forma de reagir a um assalto à mão armada?
O primeiro deles envolveu um deputado federal, que depois se tornaria presidente da República, numa eleição na qual se recusou a debater com seu adversário, que era justamente um professor inesquecível. A ausência do confronto de ideias impediu que os eleitores avaliassem as propostas de cada um e abriu espaço para a proliferação de fake news, entre elas a mamadeira de piroca, o kit gay e o livro “Aparelho Sexual e Cia” que teria sido distribuído nas creches e escolas de São Paulo na administração do prefeito Fernando Haddad. Tudo mentira.
O outro assalto aconteceu dentro de um ônibus contra pessoas desarmadas, entre elas uma professora aposentada do ensino fundamental. Os resultados foram surpreendentes.
Tiro de feijão
Foi no dia 4 de julho de 1995. Depois de acompanhar na televisão as comemorações da Independência dos Estados Unidos – país por ele idolatrado salve salve – o então deputado federal Jair Bolsonaro (PPR-RJ vixe vixe) cavalgando sua moto parou num sinal na rua Torres Homem, em Vila Isabel. Foi abordado por dois jovens. Apesar de praticante de tiro ao alvo, o capitão da reserva ficou encagaçado e entregou tudo: a Honda Sahara 350, uma pistola Glock calibre 380 carregada que trazia debaixo da jaqueta, o capacete… só não entregou as calças e otras cositas más porque não lhe foi pedido.
– Mesmo armado me senti indefeso – ele se queixou na 20ª Delegacia Policial. Agora, como presidente da República, protegido por enorme aparato de segurança pago pelo contribuinte, virou valentão e ferrabrás, defendendo aquelas armas de fogo que não teve a coragem de usar. Há duas semanas, na sexta (01 de outubro), debochou sob aplausos de apoiadores no Palácio do Planalto:
– “O Lula acabou de dizer que ele vai desarmar o povo. Inclusive a esquerda fala que a gente não come arma, come feijão. Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: Ah, tem que comprar é feijão. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar. Quando invadirem sua casa, dê tiro de feijão”.
Esse é o presidente de quem nos envergonhamos e que queremos deslembrar. Na véspera (30 set), sentou ao lado de um menino vestido com a farda da Polícia Militar de Minas Gerais e apontou para o alto uma arma de brinquedo, que estava na mão da criança. Ele havia anunciado em dezembro de 2020 a isenção de imposto de 20% sobre a importação de armas de fogo, enquanto sua proposta de reforma tributária fazia o caminho inverso ao taxar o livro, antes isento, com 12%. Ele não quer feijão e nem muito menos livros, quer armas.
– O Brasil se converteu em um “eldorado” para a indústria de armamentos – escreveu o advogado criminal Luís F. Carvalho Filho (Folha SP), para quem “o engajamento da família Bolsonaro neste bilionário negócio merece ser fiscalizado por procuradores da República”.
Essa política armamentista foi criticada no dia da padroeira do Brasil pelo arcebispo de Aparecida (SP), Dom Orlando Brandes que defendeu “uma república sem corrupção, sem mentira e sem fake news. Um pátria amada não pode ser uma pátria armada”.
Tiro de letras
No outro assalto, dentro de um ônibus, a arma de defesa usada acabou sendo o livro. Alice, a protagonista principal, foi professora no projeto “Escola do Amanhã” e na biblioteca popular Lima Barreto, em Nova Holanda, no Complexo da Maré, o maior agrupamento de favelas do Rio. Já aposentada, decidiu cursar Biblioteconomia na UNIRIO, onde foi minha aluna na disciplina Comunicação. Ela narrou em sala de aula o episódio registrado em outra crônica com riqueza de detalhes e que vai aqui resumido.
De regresso à sua casa no ônibus da Linha 388 Carioca-Santa Cruz, no ponto do Cemitério do Caju subiram dois jovens menores de idade. Na parada seguinte, em Manguinhos, entraram mais pessoas, entre elas um rapaz com tênis, bermuda cáqui, camisa xadrez e boné azul, cuja aba dobrada para baixo meio-que escondia seu rosto. Na altura do Hospital de Bonsucesso, ele assume o comando da operação, aponta para o motorista uma pistola calibre 40 e anuncia o assalto com o ônibus em movimento. Lá atrás, o outro assaltante ameaça o cobrador com outra arma.
Momentos de pânico. Ele avisa que se reagirem joga gasolina no ônibus, toca fogo e mata todo mundo. O terceiro assaltante desliza pelo corredor do ônibus com uma sacola, recolhendo pertences: dinheiro, celulares, smart phone, relógios, aliança, cordão, todo tipo de joia e até um notebook. – Atira naquele que esconder alguma coisa – ordena o De Boné. O ônibus segue acelerado. Quando já haviam terminado o saqueio, Alice viu a cara do De Boné e gritou: – Wanderniiiiiiilson!
O aluno que ela havia alfabetizado reconheceu a mestra, a única pessoa além da mãe, que o chamava pelo nome de batismo.
– Sujou! Sujou! Devolve tudo – ordenou Wandernilson. Eles restituíram a cada passageiro o que haviam roubado. Depois desceram, talvez para assaltar outro ônibus no qual não houvesse uma professora inesquecível armada com um livro. O presidente que será para sempre deslembrado jamais poderá entender que o tiro de letras disparado por uma alfabetizadora mata a ignorância humana e funciona melhor que uma pistola Glock. Não é porte de armas que a população carece, mas porte de livros.