Dois séculos e dois anos após ter deixado de ser colônia, o Brasil ainda prima pelo colonialismo. Faz parte do DNA do brasileiro o despotismo, o fanatismo por ideias e figuras banais, a bizarria, a divisão, a polarização, as diferenças sociais e a necessidade de batizar coisas feias com nomes pomposos. É a confirmação do nosso complexo de vira-latas, conforme teoria criada pelo dramaturgo Nelson Rodrigues para tentar explicar a dificuldade dos nacionais em fugir da crença inconsciente de que são uma “etnia” inferior a dos demais, particularmente a dos europeus. É uma das heranças malditas dos antigos colonizadores.
Para os portugueses, o princípio sempre foi muito claro: é melhor dividir do que unir, somar ou trabalhar junto. Para a realeza portuguesa, nós éramos os burros de carga. Pensando assim, eles enriqueceram e, unidos, são hoje uma potência. A maioria de nós continua puxando carroça para fazer a elite feliz. E, ao que parece, também ficamos felizes quando ouvimos os poetas, os políticos e os senhores feudais nos transformando em perfumaria. É assim que eles fazem quando querem tapear o povo. E de Congresso em Congresso trabalhando para emparedar o Executivo e de presidente em presidente fingindo que governa, permanecemos como nação de quinta que pensa como uma de segunda, mas sabe que jamais chegará à primeira.
Tudo isso por somos a oitava economia do mundo e a maior da América do Sul. É o problema da casa em que todos mandam e ninguém obedece. Algo com a Casa de Mãe Joana. É o Brasil das contradições. O povo morre de fome o ano inteiro esperando o Natal, um desmoronamento ou uma enchente para receber donativos dos mais aquinhoados. Às vezes, nem são eles, mas os remediados que participam da coleta de alimentos, roupas e calçados para as vítimas contumazes da irreal distribuição de rendas. Enquanto isso, a elite enfadonha, medíocre e passional se diverte rebatizando com eufemismos o que lhes incomoda. Por exemplo, tirano e antidemocrata viraram “patriotas”.
O presidente que nada faz porque nada sabe é transformado em mito e perambula pelo país alegando inocência. Mas isso não é tudo. Para os nobres, é mais simpático rotular de situação de vulnerabilidade o morador de rua e de comunidade as centenas de favelas espalhadas pelo país das idiossincrasias. Determinados extratos sociais resolveram dançar de acordo com a música. Depois de os pretos se insurgirem contra a cor e exigirem a amaneirada, enfeitada e gongórica denominação de afrodescendente, as prostitutas se ofenderam e, após exaustivas assembleias de classe, hoje só atendem ao grande público se forem crismadas e chamadas de moças de fino trato ou de garotas de programa.
Em lugar de resolver antigos e sérios problemas ligados aos índios, os poderosos, muitos deles fantasiados de políticos, preferiram rebatizá-los de povos originários. Para mim, serão sempre índios guerreiros e marginalizados pelo Poder Público. E os bandidos travestidos de policiais? Esses são os bons e mais honestos, pois resolveram assumir uma nova denominação. Milícia chama mais atenção e, atualmente, é menos jocoso do que polícia, corporação criada lá atrás para dar segurança ao povo. Atualmente, boa parte dela nem enfeite é mais, pois as barbaridades que produz contra negros e pobres lembra os navios negreiros de outrora. O que não se permite no Brasil é vincular políticos à corrupção ou aos malfeitos. Acima das leis, do bem, do mal, e de qualquer suspeita, suas excelências são um caso perdido.
No dia a dia selvagem, eles avaliam o princípio da independência e da harmonia entre os poderes coisa de pobre. Na generalidade, o presidente da República se imagina um monarca. Pensando em colocar freios no suposto rei, parlamentares se acham no direito de criar leis ao arrepio da lei somente para beneficiá-los, além de propor despesas sem a devida receita. Responsáveis por dirimir conflitos entre cidadãos, entidades e Estado, os magistrados tentam frear os antagônicos, mas normalmente esticam tanto a corda que acabam no mesmo balaio da barafunda chamada Brasil.
Duzentos e dois anos depois da Independência, continuamos tão perdidos como em 1822. Pior do que o complexo de vira-latas, é termos chegado a 2024 ainda sob o mantra elitizado e safado de que somos o país do futuro. Desse jeito, nunca seremos.
*Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras