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Roberto Amaral Escreve

Brasil vive ao Deus dará com o mal-estar democrático

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Autor/Imagem:
Roberto Amaral - Foto de Arquivo

“Não há, nunca houve, aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca da própria prosperidade. […] Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo.” – Darcy Ribeiro, O povo brasileiro.

A precipitação de muitos nas celebrações à “vitória das instituições” sobre os atentados do terrorismo que nos assola levou-os a deixar de lado o mínimo de reflexão sobre a tragédia do homem-bomba que, num simbolismo do qual por certo não guardou consciência, se imolou aos pés da estátua da Justiça que vigia a entrada do STF, aquele poder que, hoje, por um capricho histórico, ocupa o espaço que nas democracias é representado ora pela vigilância do Congresso (aqui, porém, comprometido com a direita e o neofascismo), ora pelo Executivo, hoje mais preocupado com o mantra do “ajuste fiscal” – que o governo originalmente comprometido com o desenvolvimento e o combate às desigualdades assimilou por não ter forças, políticas e ideológicas, para enfrentar a pressão desencadeada pelo financismo predador da produção e do desenvolvimento social.

Essa superficialidade de análise, ou desatenção, impediu mesmo bons cronistas de ver no gesto do fanático um sintoma da intoxicação doutrinária de toda a vida a que foi e é submetida grande parte de nossa população, desde que a dita grande imprensa e setores ponderáveis das forças armadas abraçaram o projeto de tomada do poder pela direita, dominando corações e mentes. Avanço reacionário que não encontra a resistência orgânica ou ideológica das nossas várias esquerdas, conquistadas pela ordem.

Esta é, sem dúvida, a questão central. Há um largo espectro de razões a ser invocado, razões que transitam do desamparo das utopias e da falência de organizações e partidos revolucionários à adesão das esquerdas, sem crítica, ao modo conservador de fazer política. Isso implicou tanto a renúncia a programa especifico, próprio, alternativo ao capitalismo e ao statu quo, quanto o grave abandono do campo da luta ideológica, donde o recesso da militância.

A direita reanimada e a esquerda encantada se confundiram no amor igual ao poder.

Voltando: o essencial no episódio da Praça dos Três Poderes não é seu autor material, mero títere insuflado por uma cantilena que não compreendeu, pois falava contra seus interesses de vida e classe. O homem-bomba do dia 13/11 deve ser visto como triste vítima da doutrinação da direita, levada a extremos pelo discurso neofascista, impune, e estimulada pela indisciplina militar, vista como guarda de segurança para desatinos, a exemplo da protegida ocupação de quartéis, antessala da infâmia de 8 de janeiro de 2023.

A arte dos atentados está na essência do fascismo civil e militar, uma das modalidades da loucura política assentada no desrespeito à dignidade humana (por isso detesta os pobres dos quais se serve) e à vida. Nos estertores do regime militar tivemos a insanidade do que ficou conhecido como o “Atentado do Riocentro” e as explosões de artefatos, com vítimas civis, contra a OAB e a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, todos em 1981. Em 1986, Jair Bolsonaro foi preso e respondeu a processo por tentar explodir bombas em quartéis da Vila Militar, em protesto, dizia o meliante, contra o que chamou de “baixos salários” da corporação. Antes do 8 de janeiro de 2023, outros celerados, no dia da posse de Lula e Alckmin, em ações também apontadas como isoladas, praticaram ações violentas e atentados. Um deles, frustrado, visava a explodir o aeroporto de Brasília.

São atos que podem ser considerados isolados somente na sua execução, pois rebentos de uma intoxicação ideológica coletiva, ainda não dissipada.

Há muitos ovos chocados pela pestilência, na sociedade e na caserna, como demonstra o hediondo plano de golpe de novembro de 2022, que não foi levado a cabo graças a uma dissidência entre engalanados homens de farda. Assim se repete a história: os golpes de 1955 e 1961 não conheceram o sucesso porque os generais se dividiram. Na outra ponta está a unidade de 1964, que nos deu 21 anos de ditadura.

É preciso encarar o fundo da causa: o mal-estar democrático construído pela pregação doutrinária – nos quartéis, nas tribunas, nos púlpitos, nos meios de comunicação em geral, nas redes sociais, pregação prima da subversão, sem peias, sem limites políticos ou éticos, e, principalmente, sem contraditório, construindo frustração, mãe da manipulação de consciências. Sobretudo quando essa manipulação não conhece (como deixou de conhecer, no Brasil, o cantochão neofascista) o contrachoque das forças progressistas. Estas, na sua variada morfologia, renunciando ao enfrentamento, cederam à institucionalidade, por definição conservadora, a defesa da democracia.

Ao deus-dará (ou seja, a ninguém) foi delegada a utopia socialista.

A doutrinação reacionária não é fenômeno de hoje: com graus variáveis de intensidade, acompanha nossa história, e sempre teve nas forças armadas do Estado brasileiro um foco de formulação doutrinária e agitação, vencendo os limites da conjura e da fratura constitucional. Foi assim em todas as oportunidades, como na desconstituição do governo Vargas, na desmontagem do governo Jango, na implantação da ditadura de 1964, e no acobertamento do rol de crimes políticos e penais que se seguiram. A longa e permanente pregação, nos meios de comunicação e nas escolas militares, deitou no território da democracia uma série de minas terrestres, prontas para explodir ao primeiro toque do passante desavisado. Sua desativação depende da contraofensiva ideológica das organizações democráticas, progressistas e de esquerda resistentes (incluindo partidos e sindicatos), até aqui na “zona de conforto”, passageiros da falsa perspectiva de que o impasse, desafio eminentemente político, se resolverá pela via do judiciário.

A alienação já levou a esquerda brasileira a apostar na fidelidade democrática das forças armadas, e, a partir desse filão, a crer que ora o general Lott, ora o “dispositivo militar do general Brasil”, asseguraria aos trabalhadores o império da democracia social.

A sustentação da democracia (e mais ainda o progresso social) não podia naqueles idos, como não pode agora, depender de um STF e de uma PF surpreendente e circunstancialmente republicanos, a refazerem os respectivos passados recentes, ora de omissão, ora de cumplicidade com o crime. Saudamos a resistência do poder judiciário (este é o movimento correto, ditado pelas circunstâncias), ao mesmo tempo em que precisamos ter presentes os idos de 2016, a trama golpista que, partindo da deposição de Dilma Rousseff, culminou com a eleição de um desqualificado para a presidência da República, substituindo um perjuro. Nada dessa tragédia teria curso se não contasse com a bênção do STF de então.

O avanço político, que nos termos presentes é a apenas a sustentação democrática, depende do que chamamos de vontade nacional, por construir. Somos ainda um povo em busca de seu papel.

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