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‘Brasil vive indiferença ética e promove o genocídio indígena’

O destino percorrido pelos povos indígenas no Brasil não é resultado apenas das decisões de específicos atores políticos, mas de toda uma sociedade que historicamente plasma sua “civilização” e seu “desenvolvimento” na (in)compreensão sobre as mais de 305 distintas e ricas culturas originárias a partir de bases racistas e discriminatórias que as exterminaram

O Supremo Tribunal Federal adiou novamente para agosto de 2021 o prosseguimento do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 pelo qual deverá apreciar litígio que envolve a Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, situada o Estado de Santa Catarina, no bojo de uma ação de reintegração de posse promovida em face da nação Xokleng. Na referida terra indígena vivem também os povos Guarani e Kaingang.

O julgamento é importante e paradigmático pelo fato do Supremo Tribunal Federal ter reconhecido sobre este “case” a denominada “repercussão geral”, vale dizer, a decisão constituirá um referencial e precedente importante a ser observado em várias outras causas que envolvem também esta mesma questão fundamental e histórica para o Brasil, qual seja, a demarcação das terras tradicionais indígenas, conceito tal com significado constitucional e de direitos humanos bem precisos: por terra tradicional, entenda-se, aquela historicamente possuída pelos povos indígenas para a concretização de seu modo de vida; para prover ao seu sustento; para o culto às suas crenças e, de modo geral, para manter, realizar e renovar suas referências cosmológicas sob dinâmicas relacionais próprias e calcadas em suas raízes milenares.

No plano internacional, é reconhecido o direito dos povos indígenas à manutenção e ao fortalecimento de sua relação espiritual com suas terras, com seus territórios, com suas águas, seus mares costeiros e demais recursos que tradicionalmente tenham possuído, ocupado e utilizado por qualquer outro meio, além do direito a assumir as responsabilidades decorrentes das referidas garantias, quanto às gerações futuras, tal como disposto pela Declaração das Nações Unidas sobre os direitos destes povos; ainda mais, a mesma Declaração estabelece que os povos indígenas não serão removidos à força de suas terras ou territórios; que nenhum traslado se realizará sem o seu consentimento livre, prévio e informado e sem um acordo prévio sobre uma indenização justa e eqüitativa e, sempre que possível, com a opção do regresso[1]. Ainda a Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 15 de junho de 2016, consagra que tais povos…têm direito à proteção contra a introdução, abandono, dispersão, trânsito, uso indiscriminado ou depósito de qualquer material perigoso que possa afetar negativamente as comunidades, terras, territórios e recursos indígenas, além do direito à conservação e proteção do meio ambiente e da capacidade produtiva de suas terras ou territórios e recursos, sendo dever dos Estados estabelecer e executar programas de assistência aos respectivos povos originários para garantia da conservação e proteção, sem discriminação, das terras e do meio-ambiente de que dependem para manutenção de suas existências[2].

Sob o ponto de vista constitucional, o termo “terras tradicionais” indica as terras ancestrais possuídas por tais povos antes mesmo do surgimento do Estado-nacional brasileiro, condição reconhecida pela Constituição Federal de 1988, de modo sistemático e, especialmente, pelo artigo 231, que rompeu com a visão negacionista e assimilacionista (etnocida) que, no plano normativo, vigorou no Brasil até 1988, ao estabelecer categorias fundantes consagradoras do multi e pluriculturalismo; que reconhecem o direito a viver com dignidade e sob as próprias referências culturais, linguísticas, sociais, econômicas, religiosas, com reconhecimento simultâneo de sua cidadania e do direito de acesso aos meios necessários para seu exercício.

Como elemento nuclear do mencionado status, a posse sobre suas terras tradicionais é garantida aos povos indígenas de forma permanente, portanto, enquanto propriedade da União, são inalienáveis, indisponíveis e intransferíveis, sendo nulo qualquer ato jurídico que delas disponha.

Quaisquer decisões políticas, legislativas ou administrativas que gerem impactos sobre tais povos e seu modo de vida devem ser previamente informadas e objeto de livre consulta às comunidades originárias, tal como garante a Convenção n°169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), à qual o Brasil aderiu e ratificou a partir de 2003.

A Carta Fundamental de 1988 é muito clara ao reconhecer em seu texto, fruto da participação e luta dos povos indígenas na Constituinte de 1988, as dimensões presentes e garantidoras de sua visibilidade enquanto direitos poliétnicos, isto é, garantias que projetam sua identidade, sua cultura, territórios tradicionais, sua autodeterminação e sua participação[3], autenticas cláusulas pétreas e contra-hegemônicas.

A supressão ou sistemática tentativa de extinção das referidas salvaguardas, em especial a proteção e preservação das terras indígenas tradicionais (que não se confunde com a ideia de “reservas” ou qualquer outro instrumento assimilacionista), implica na proposição clara de extinção das culturas e da existência dos povos originários do Brasil, seja pela destruição direta ou pela omissão tolerante com invasores e setores interessados no acesso às citadas terras.

Sem a preservação das terras tradicionais, os povos indígenas deixam de existir, o que equivale à mais precisa e técnica ideia de genocídio e de etnocídio, expressões criadas pelo jurista Raphael Lemkin e, quanto à última das expressões, revisitada por Pierre Clastres[4].

Os povos indígenas do Brasil sempre enfrentaram um autêntico processo genocidário, em distintos períodos e de modo não linear. Cuidamos de séculos de um processo discriminatório étnico-racial motivado por interesses econômicos, que atinge sob o atual governo, declaradamente anti-indígena, proporções e limites gradativamente sedimentados ao longo das décadas. Basta a menção ao Projeto de Lei n°490, que data de 2007. Contudo, o radicalismo anti-indígena e antiambientalista do atual governo brasileiro, ao que se soma ao desmantelamento das estruturas protetivas normativas, administrativas, fiscalizatórias e orçamentárias ambientais e indígenas, favoreceu o avanço das pautas propostas por setores pecuaristas, mineradores, dentre outros, visando o apossamento das terras indígenas e suas riquezas, além de invasões de grupos hostis aos indígenas, inclusive com a presença do crime organizado, tal como vem ocorrendo em terras Pataxós, na Bahia[5] ou, ainda, em terras Yanomamis[6], na região amazônica, mediante excursões armadas e com o intuito de extermínio dos referidos povos sob a omissão do Estado brasileiro (genocídio).

Neste sentido, parece-nos clara a supressão das condições essenciais para a continuidade das vidas individuais e coletivas dos povos mais antigos do Brasil. A concatenação de ações de grupos armados e invasores de terras indígenas, somadas às iniciativas legislativas e judiciárias, às quais se somam as decisões políticas e orçamentárias para desmonte das estruturas protetivas a tais povos, suas terras e florestas tradicionais, incorrem na sistematização intencional – por ação e/ou por omissão – para erradicação permanente de suas existências sobre a Terra.

Aliás, escreveu também Raphael Lemkin que o genocídio deve “…antes ser entendido como um plano coordenado de diferentes ações cujo objetivo é a destruição das bases essenciais da vida de grupos de cidadãos, com o propósito de aniquilar os próprios grupos.”[7].

Assim, por exemplo, quando o Estado brasileiro precariza o subsistema de saúde indígena e conduz à morte anual mais de 800 crianças indígenas, motivadas por doenças evitáveis[8], especialmente sob uma pandemia, apesar das claras determinações constitucionais e internacionais a que está submetido, atua o governante com omissão assinalada por dolo eventual (assume com sua conduta omissiva o risco de produzir o resultado morte) e, para lembrarmos Foucault, exerce seu biopoder para deixar morrer aqueles que, para tanto, seleciona.

O que parece não ser claramente percebido pelo Estado e pela sociedade brasileira, é a caracterização evidente de um genocídio em curso e que no presente momento histórico se aproxima de seu ápice acaso certas iniciativas legislativas e judiciais se mostrem exitosas, na medida em que o conjunto da obra conduz à percepção sobre um claro contexto de violência física, institucional e administrativa que vitima sistematicamente os povos originários no Brasil, com verdadeiros e inestimáveis danos existenciais suportados pelos povos indígenas.

Se o crime de genocídio implica na necessidade de demonstração da intenção específica de fazer desaparecer da face da terra certo grupo humano por razões étnicas, raciais, religiosas ou nacionais, tal como determinam a Convenção das Nações Unidas para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio (1948) e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998), o contexto sistemático das dinâmicas violentas adotadas e praticadas contra os povos indígenas no Brasil demonstram não apenas os distintos genocídios já cometidos, mas também que se pretende definitivamente avançar sobre limites que, uma vez ultrapassados, implicarão na impossibilidade de retorno; vale dizer: a destruição dos biomas e a flexibilização das regras para acesso de terceiros às terras indígenas implicarão na extinção de ambos: do bioma amazônico, por exemplo, enquanto regulador climático para o planeta; dos povos indígenas, na medida em que dependentes de suas terras originárias para preservação de seu modo de vida.

O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 pelo Supremo Tribunal Federal deve ser considerado histórico, por contrapor duas teses: de um lado, a visão do indigenato e que reconhece o direitos dos povos indígenas às suas terras e, de outro, a denominada “tese do marco temporal” proposta pelo Parecer 001/2017 da AGU e que vem fundamentando o retardamento de demarcações pelo Poder Executivo, estapafúrdia e inconstitucional, na medida em que não guarda qualquer sustentação com a Carta de 1988.

A tese do marco temporal implica na ideia de que apenas terão direito às terras indígenas os povos que comprovem que, em 5.10.1988 (data da promulgação da Constituição Federal de 1988) já se encontravam na respectiva posse; que já estivessem disputando em juízo tais terras ou, ainda, que um conflito material pelas citadas terras possa ser comprovado.

Referida tese contraria e viola frontalmente a Constituição Federal e as normas internacionais às quais o Brasil aderiu. Também ignora a história do genocídio indígena ao longo dos últimos 521 anos já que, desde 1500, tais povos vêm sendo espoliados, roubados; ainda mais, em relação aos povos em isolamento voluntário, acima citados, como poderiam provar que disputam suas terras em juízo ou fora dos tribunais, se são exatamente povos isolados? Ainda, como poderiam comprovar disputas em juízo, se até 1988 tais povos eram obrigados a viver sob a tutela do Estado?

A despeito do relevante julgamento acima pela Corte máxima do país, identificamos um ataque mais amplo e frontal às nações indígenas do Brasil por conta do Projeto de Lei n°490/2007 e suas proposições, desavergonhadamente aprovado no último dia 23.6.2021 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, apesar de flagrantemente inconstitucional e inconvencional (violador das convenções internacionais) e que modifica os caminhos para a demarcação de terras indígenas (TIs), com flexibilização das diretrizes estabelecidas na Constituição.

O PL ainda propõe:

a transferência ao Congresso Nacional – dominado por bancadas anti-indígenas – da competência para a demarcação das Terras Indígenas, função típica do Poder Executivo;

quanto aos povos indígenas em isolamento voluntário, propõe termos e justificativas vagas para justificar o contato com tais grupos humanos, indígenas que por sua tradição oral sabem que o contato com o homem branco pode significar o seu fim; assim, por exemplo, estabelece o PL que o contato pode ser realizado se presente o “interesse público”, expressão vaga e que certamente será interpretada em prejuízo dos mencionados grupos;

importante também apontar que o PL 490 também permite que as chamadas “reservas indígenas”, que não são necessariamente terras com ocupação “tradicional” reconhecida e que foram destinadas ou doadas aos povos originários para garantia de sua sobrevivência, poderão também ser “tomadas” pela União;

legaliza, outrossim, a chamada “tese do marco temporal”, já acima detalhada;

também flexibiliza as regras para que terceiros, mineradoras, garimpeiros, pecuaristas etc. ocupem terras indígenas (Tis), o que significaria o fim de tais culturas milenares;

elimina, ainda, o direito à prévia, livre e informada consulta aos povos indígenas, direito previsto pelo artigo 231 da CF/88 e também por normas internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

É de se estranhar a mais importante Comissão da Câmara dos Deputados atuar exatamente contra uma de suas principais funções: avaliar a constitucionalidade dos Projetos de Lei que lhe são submetidos. Contudo, a cooptação ou o “sequestro” de estruturas administrativas para inviabilizar exatamente a consecução de suas funções constitucionais tem se tornado corriqueiro sob o atual governo, como se nota nos casos da Funai e da Fundação Palmares que, claramente, abandonaram seus compromissos não apenas jurídicos, mas também morais.

O PL n°490/2007 ainda seguirá para discussão e votação pelo Plenário da Câmara dos Deputados; posteriormente, deverá passar pelas comissões e Plenário do Senado Federal; se, ainda assim, for aprovado e sancionado como lei, deverá enfrentar o crivo do Supremo Tribunal Federal em ações diretas de inconstitucionalidade que deverão ser apresentadas à Suprema Corte, dada a sua evidente ruptura com todos os princípios e interpretações jurídicas possíveis, protetivas dos direitos humanos, da multiculturalidade, da democracia e das minorias.

Tal PL n°490/2007, verdadeiro escárnio em relação à democracia e à própria civilização, embora anterior ao atual governo, encontrou terreno fértil no atual momento histórico-político pelo qual passa o Brasil e que coloca em definitivo risco de extermínio as culturas indígenas do país.

As ações e omissões atuais do Estado brasileiro, especialmente quanto ao comentado Projeto de Lei, podem significar o golpe de misericórdia contra tais povos, que não sobreviverão a tal sistematização destrutiva de seus direitos, ademais previstos e protegidos pela CF/88 e também pela Convenção Internacional n°169 da OIT, atualmente também alvo no Parlamento brasileiro por meio do Projeto de Decreto Legislativo (PDL nº 177/2021) com o objetivo de que o Estado brasileiro denuncie e, assim, abandone a apontada Convenção.

Sobre tal PDL, temos afirmado que, além de inconvencional por violar leis internacionais às quais o Brasil se submete, ainda ofende cláusula pétrea[9].

O Projeto de Lei n°490/2007 pode significar o passo derradeiro para a consecução do genocídio cultural (etnocídio, nas palavras de Robert Jaulin, Raphael Lemkin e Pierre Clastres). Mas também o extermínio físico. E toda a sociedade brasileira será também responsável do ponto de vista histórico, coletivo, estrutural e, ainda, mesmo individual, na medida em que vivemos e progredimos sobre bases construídas no passado e no presente sobre a escravização, o racismo e o genocídios de indígenas, pretos, pardos, mulheres, populações LGBTQUIA+, consideradas todas as intersecções discriminatórias possíveis e consequentes do referido contexto.

O filósofo alemão Eric Voegelin (1901-1985), exilado nos EUA durante o período do III Reich, ao retornar a uma Alemanha que iniciava sua reconstrução física e moral, realizou preleções nas Universidades alemãs, até hoje consideradas memoráveis; nelas, indagava como fora possível que Hitler e sua gangue houvessem sido eleitos sob o regime democrático de Weimar conduzindo a nação mais culta da Europa para a destruição completa, num banho de sangue sem precedentes; Voegelin propõe uma importante reflexão: que os alemães, no pós-guerra, haviam suprimido o fato subjacente de que os crimes cometidos sob o regime nazista demandavam, na verdade, um exame individual de consciência por cada alemão[10].

Guardadas as devidas proporções e contextualizações históricas de cada período e palcos históricos, é bom que se esclareça, o destino percorrido pelos povos indígenas no Brasil não é resultado apenas das decisões de específicos atores políticos, mas de toda uma sociedade que historicamente plasma sua “civilização” e seu “desenvolvimento” na (in)compreensão sobre as mais de 305 distintas e ricas culturas originárias a partir de bases racistas e discriminatórias que as exterminaram (eram mais de mil nações, com cerca de 5 milhões de indivíduos, quando os europeus aqui chegaram).

É responsabilidade de cada indivíduo no Brasil com o mínimo de entendimento sobre a realidade de seu entorno, não apenas optar por escolhas éticas e democráticas, mas também assumir uma postura ativamente antirracista e pela defesa das terras indígenas.

Na realidade, as sociedades dominantes, capitalistas e industrializadas dependem mais dos povos originários e da preservação de suas terras e florestas, do que imaginam.

A indiferença ética e política, pela sociedade brasileira e suas autoridades, em relação ao PL n°490/2007 e quanto à desatinada tese do marco temporal suscitará a responsabilidade moral e histórica de todo o povo brasileiro; além da imputabilidade penal dos líderes políticos e corporativos que a cada dia conectam os elos desta cadeia genocida.

Como escreveu Hermann Broch em seu último romance intitulado Die Schuldlosen (Os Inocentes), “…a indiferença política é indiferença ética, portanto intimamente relacionada com a perversão ética…Esta culpa inocente sobe até esferas metafísicas e mágicas e desce até a escuridão do reino do instinto”.

*Pós-doutorando no programa internacional de pós-doutorado em Novas Tecnologias e Lei do Mediterranea International Centre for Human Rights Research

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