Projetado antes mesmo da cidade planejada, o Lago Paranoá é referência de Brasília. Como ideia, surgiu ainda na Missão Cruls em 1894 — sugestão de alívio para a baixa umidade do ar na região. Mais tarde, figuraria nas projeções de Lucio Costa como espaço de preservação e lazer.
Nas décadas seguintes à construção do Plano Piloto, a ocupação territorial mesclou o urbano e o natural. Conforme Brasília crescia, mais perto as edificações ficavam das áreas de preservação.
Com isso, vieram as cercas, os jardins exóticos, os píeres exclusivos. A paisagem foi alterada. O acesso, cerceado. O Lago idealizado para todos tornou-se para poucos.
Assim, a essência do espelho d’água, que devia ser aberto a toda população — esperada à beira da orla, não à margem dela — se perdia.
A ocupação irregular somou-se ao impacto ambiental, e o impasse então parou nos tribunais. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) questionou, em ação civil pública de 2005, o uso das zonas de preservação do manancial.
Como área pública e de preservação permanente, a orla do Paranoá deveria estar desobstruída e com vegetação íntegra. Por isso, em 25 de agosto de 2011, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu: a responsabilidade pela recomposição ambiental era do governo do Distrito Federal, a quem cabia retomar o espaço e patrimônio público no prazo inicial de 120 dias.
No entanto, quatro anos se passaram até que o Executivo local cumprisse a sentença para democratizar o acesso à orla. Com nova gestão, do governador Rodrigo Rollemberg, em 12 de março de 2015, a Procuradoria-Geral do DF firmou acordo com o MPDFT para iniciar a primeira fase da desobstrução.
Na ocasião foi apresentado o plano de fiscalização e remoção de construções e instalações erguidas na área de preservação permanente (APP) do Lago Paranoá. O documento indicava o cronograma de retirada de cercas, muros e obstruções nos 30 metros contados a partir do nível máximo do reservatório, a cota de 1.080 metros.
Para tornar a Orla Livre, foram dois anos de operações — uma vez que houve questionamentos judiciais, interrupções e retomadas. Em 20 de maio de 2017, as primeiras intervenções foram entregues. Afinal, era fundamental oferecer infraestrutura nos locais desobstruídos para organizar o uso pela população.
Inserido em área urbana, o Lago Paranoá possui usos múltiplos — da navegação e do lazer ao abastecimento para consumo humano. Por isso, o espelho d’água está mais suscetível a agressões do que os reservatórios mantidos em áreas mais protegidas do Distrito Federal, como o do Descoberto, na área rural de Brazlândia, e o de Santa Maria, dentro do Parque Nacional de Brasília.
A sensibilidade do ecossistema nos 109 quilômetros que margeiam o Lago enquadra a orla como área de preservação permanente. É o que estabelece o Código Florestal.
O artigo 4º da norma define que são de proteção permanente “as áreas no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes de barramento ou represamento de cursos d’água naturais, na faixa definida na licença ambiental do empreendimento”.
Foi esse entendimento que embasou a sentença do Tribunal de Justiça do DF e Territórios para determinar a desocupação de 30 metros à beira do Paranoá. O perímetro é definido pela Resolução nº 302, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Em 2015, além do plano de fiscalização e remoção das construções irregulares, o acordo do governo local com o Ministério Público do DF e Territórios também incluiu um calendário de desobstrução.
As operações de retirada de cercas, muros e obstáculos foram iniciadas pela Agência de Fiscalização do DF (Agefis) em agosto de 2015. As ações, constantemente interrompidas por embates nos tribunais, duraram dois anos.
“A maior resistência foi nos tribunais”, lembra a diretora-presidente da Agefis, Bruna Pinheiro. “[Eram] excelentes advogados e muitos deles moradores de casas próximo à orla”, conta.
Entre liminares e interrupções, a Agefis retomou 1.736.675,09 metros quadrados de área pública na orla do Lago Paranoá. Dos 454 lotes alvos de operação, 108 foram recuados por iniciativa dos próprios moradores.
Quem não retirou os obstáculos por conta própria teve de arcar com os custos operacionais. As cobranças somaram R$ 267.898,85. Individualmente, cada morador arcou com cerca de R$ 3 mil.
A desocupação das margens do Lago, local considerado o mais nobre de Brasília, tem significado especial para a história da cidade. A medida coloca o interesse público e as normas acima de privilégios e classes sociais.
Não à toa, as ações começaram pela área mais delicada do ponto de vista estratégico, segundo a titular da Agefis, Bruna Pinheiro.
O desgaste político do órgão foi significativo. Isso porque, até aquele momento, à Agefis eram atribuídas ações apenas em áreas de vulnerabilidade social, como a retirada de 500 barracos no Sol Nascente, em janeiro de 2015. “Éramos confrontados [com argumentos] como o ‘faz aqui, mas não faz na orla”, afirma Pinheiro.
Dessa forma, foi necessário construir o entendimento de que a medida seria cumprida, independentemente de classe social. “O mais difícil foi convencer a população de que a gente estava falando para valer. A falta de credibilidade, no começo, era muito grande”, avalia.
Em diálogo com a população, o governo buscou conscientizar de que a orla do Lago é área pública. O Plano Orla Livre foi apresentado em 8 de dezembro de 2016 e debatido em audiências com os moradores. Também foram abertas enquete e consulta pública virtual para que os brasilienses indicassem a infraestrutura que gostariam na região.
As ações de desocupação eram sempre precedidas de aviso prévio aos residentes na área. Assim, conforme elas avançavam, o recuo de cercas e obstáculos passava a ser feito espontaneamente pelos moradores.
Com antecedência de duas semanas, auditores fiscais da Agefis apresentavam a possibilidade de desobstrução por iniciativa própria. A medição dos lotes era feita por serviço de topografia da Secretaria de Gestão do Território e Habitação.
A ocupação de área pública na orla é resultado, em certa medida, da forma como Brasília se desenvolveu ao longo de décadas. É o que defende o secretário de Gestão do Território e Habitação, Thiago de Andrade.
A proposta de aproximar comunidade e meio natural, segundo ele, está na gênese da cidade e, por vezes, ocorreu sem regramento específico, o que deu margem para variadas interpretações. “É um tipo de urbanismo muito característico de Brasília. Foram criados conceitos de área verde, embora sejam todos espaços públicos”, pondera.
Além de desobstruir, o governo de Brasília também assumiu o compromisso de tornar a orla acessível à população. Para isso, após as operações, iniciou, em 22 de agosto de 2016, as obras das ciclovias da QL 10 e da QL 12 do Lago Sul.
A democratização de uma área de preservação permanente exige ajustes e cuidados para que a população possa ocupá-la em harmonia com o meio ambiente.
Com esse norte, o governo atuou em pontos específicos da orla do Lago Paranoá e implementou infraestrutura, como ciclovias, pistas de caminhada, trapiches (espécie de pontes de madeira) e pontos de apoio aos usuários.
Três pontos principais receberam melhorias e concentram o público. O Deck Sul, próximo à Ponte das Garças, na L4 Sul, é um complexo de lazer.