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Rebelião das palavras

Briga de cão e gato fica devendo uma aula de questão linguística

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

– Vamos, Thor! Sem trégua com a canalha!

Ao ouvir essas palavras, Paulo interrompeu sua caminhada pelo Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e virou-se na direção de quem falava. Viu um homem com um enorme cachorro preto que hesitava em avançar, aparentemente morrendo de medo de um gatinho que eriçava os pelos e rosnava.

Jornalista e escritor, Paulo era apaixonado por palavras. Gostava de rastrear a origem e evolução dos vocábulos e as mudanças em suas acepções. Ficou encantado com o palavreado arcaico e aproximou-se do homem com o cão. Perguntou-lhe o que o fizera empregar um vocabulário tão pouco comum. O homem olhou-o intrigado e respondeu:

– Que dizeis? Cáspite! Homessa! – e se afastou.

Confuso, Paulo também foi embora. Ele não sabia, mas acabara de testemunhar um dos primeiros episódios da Rebelião das Palavras.

Durante o resto do passeio, Paulo observou dezenas de pessoas que empregavam expressões antiquadas. Viu dois adolescentes tratarem-se por vosmecê. O diálogo entre eles, em especial, tornou-se um ícone da mescla de vozes passadas e atuais. Normalmente, eles falariam assim:

– Tu vai na biqueira, maluco?

– Podi crê, mano. A erva dali é do cacete!

Em vez disso, falaram assim:

-Vosmecê vai à biqueira, tresloucado?

– Como não? A diamba dali é supimpa!

À noite, assistindo ao noticiário da TV, Paulo ouviu, divertido, o apresentador falar, com voz grave, “O presidente ensandeceu” (pirou, ficou louco de pedra), aparentemente sem perceber que havia algo de estranho com o vocabulário empregado. Em pouco tempo, ao senso de ironia somou-se uma forte curiosidade: O fenômeno era generalizado? Havia setores imunes às mudanças linguísticas? Seria algo permanente, irreversível, ou logo passaria?

Paulo telefonou para alguns amigos e perguntou-lhes se haviam notado a transformação no vocabulário. Sim, haviam percebido. Combinaram encontrar-se em um barzinho que ficava aberto a noite toda.

No bar, Paulo e três amigos ocuparam uma mesa discreta. Um garçom aproximou-se e indagou:

-Já sabeis o que ides beber? É só pedir que servir-vos-ei.

Os quatro se entreolharam e pediram uma cerveja, para começar.

Mais tarde, enquanto bebiam a primeira das várias cervejas daquela noite, trocaram opiniões sobre as causas da retomada de expressões obsoletas pelos brasileiros. Foram traçadas as mais delirantes teorias para explicar a coisa, até mesmo uma intervenção de extraterrestres, até que Pedro, também jornalista e escritor, afirmou:

-Acho que estamos testemunhando uma revolta. Uma rebelião das palavras. – E prosseguiu:

-Eu guglei, moçada. O português do Brasil tem bem mais de 400 mil palavras. Bastam umas 4000 para ler um jornal, e com 8000 você discute qualquer assunto complexo. O que eu acho que as 392 mil palavras relegadas à obsolescência e depois ao esquecimento decidiram reagir.

-É uma hipótese interessante – interveio Geraldo, que era psicólogo analista, ou seja, junguiano. – Vocês estão familiarizados com o conceito de inconsciente coletivo? Para Jung, é a camada mais profunda da psique, cheia de imagens e arquétipos que costumam se manifestar nos sonhos. Carlos Gustavo que me perdoe pela heresia, ele considerava que as imagens virtuais eram comuns a todos os seres humanos, mas talvez haja uma compartimentação por idioma e as palavras de cada língua – em especial as relegadas ao esquecimento – façam parte do inconsciente coletivo.

– Fico com Freud – contrapôs Ricardo, que era psicanalista freudiano. Ele fala em inconsciente pessoal, derivado de experiências individuais. As pessoas já leram ou ouviram bem mais palavras que as incorporadas ao seu vocabulário, e concordo, por algum motivo essas palavras acumuladas no inconsciente decidiram se rebelar e vir à tona. Como nós temos um vocabulário bem superior ao da maioria, estamos imunes, mas…

– Imunes o cacete – cortou Pedro. E explicou:

– Às vezes uma colega jornalista e eu deixamos o trabalho para dar uma rapidinha. Ela é altamente articulada, com um vocabulário tão rico quanto o nosso. E tem uma leve perversão: quando está perto do orgasmo, diz sempre “Me bate, me chama de vadia!”. Mas é só uma interjeição, certa vez obedeci e ela ficou indignada, quase parou a coisa no meio – acrescentou com um risinho. E prosseguiu:

-Pois bem, saímos hoje para transar e ela exclamou: “Malhai-me forte! Chamai-me meretriz”. – Achei que ela estava brincando, quase perguntei “Não preferis marafona?”, mas vi por seu rosto que estava quase lá, não fazia brincadeirinhas. Percebi depois que ela não tinha a menor ideia de que empregara o vós e expressões antigas.

Quando o garçom trouxe a conta, os amigos perceberam que estava incluído um couvert artístico – e não houvera show nenhum durante toda a noite. Paulo explodiu:

– É um despautério! Ousais cobrar-nos por um espetáculo que não se realizou? Esconjuro-vos, arrenegados!

Os três olharam para Paulo, em silêncio, e deixaram o bar. Tinham duas certezas, e não eram o céu estrelado sobre a cabeça e a lei moral dentro do peito de que falava Kant. A primeira é que não estavam absolutamente imunes à rebelião das palavras. A segunda é que, até os deuses decidirem em contrário, a linguagem da tigrada nunca mais seria a mesma.

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