O quintal
Busca frenética por filhote acaba em futuro com ave, supõe-se, já em vida adulta
Publicado
em
Percebi apenas o vulto. Fixei os olhos e ela estava lá. Em pé, sobre os cacos de vidro cimentados pelos inquilinos que nos antecederam. Desesperada, produzia sons desconexos. Agitada, como quem chama pelo sopro de vida. Jamais esquecerei em minhas andanças de distraído daqueles sons e daquela pequena criatura saltitando sobre o muro lateral da nossa casa.
Vencido o portão de ferro, a grama verde e alta, o grande quintal: a jabuticabeira no canto direito de quem entra, a casa ao fundo e na ala esquerda, a terra já virada para os futuros canteiros da horta que, aos poucos, começava a tomar forma. Jabuticabas aos montes, ali, agarradinhas ao caule da árvore-mãe, sombra e carinho. Não para ela, a pequena ave em sua busca alucinada pela cria caída do ninho.
Durante toda a manhã, ela e o parceiro saltitaram e mergulharam em voos cegos por cada centímetro de nosso quintal. Busca desesperada, quase epilética. Num zap de olhar, localizei o filhote tentando um voo desajeitado, horizontal, sem domínio nem direção. Tentei pegá-lo com a toalha retirada do varal. Nada. A cada tentativa, nova fuga em voo horizontal. E assim, o frágil filhote desengonçado sumiu por entre os galhos e folhas verdes do pé de erva-cidreira. Ao final da tarde, o casal de pássaros como veio se foi.
Durante os dias que se seguiram, os dois continuaram o mesmo ritual. A mesma procura e determinação: ele sobre o muro, espreitando; ela saltitando por entre as plantas, na grama, revirando a terra dos canteiros de nossa horta imaginária.
Por décadas – e ainda hoje – carrego em mim as cenas daquele drama e dos cânticos/chamados da dupla no coração de nosso quintal. Busca desesperada movida por um amor especial, sobre-humano. Ritual de busca e despedida da cria que jamais viriam reencontrar.
……
Tempos depois, deixei a casa, a família e a pequena cidade esquecida no interior paulista.
Ficaram comigo algumas imagens desbotadas como a parede caiada do imenso quintal.
Por ritual ou necessidade afetiva, ainda hoje acredito que, todas as manhãs, aquele pequenino casal retorna esperançoso ao mesmo quintal e lá permanece até o cair da tarde, à espera.
O mato tomou conta dos canteiros, da horta inacabada, do pé de jabuticaba, da casa, do quintal, de tudo.
