Se Deus, que dizem ser brasileiro, duvidava, não precisa mais ser adepto de São Tomé. A prova está aí: em um cenário mais improvável, um tesouro. Entre sacolas plásticas, caixas de papelão e lixo revirado, o menino abre a boca em um sorriso que também é um grito de surpresa e segura entre as mãos um objeto que, aos seus olhos, é quase precioso, apesar de não passar de uma árvore de Natal de 30 centímetros, retorcida, com luzes quebradas e enfeites faltantes.
Gabriel, maranhense de 12 anos, não sabia, mas aquele instante de alegria fugaz no lixão em Pinheiro (MA), capturado pelo fotógrafo João Paulo Guimarães, passaria a ser o retrato triste do Brasil em que 20 milhões de pessoas passam fome, de acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), e, como ele, recorrem ao lixo para sobreviver.
Naquela segunda-feira, 8 de novembro, Gabriel revirava o lixão a 112 quilômetros de São Luís ao lado da mãe, Maria, desde as sete da manhã, em busca de alimentos. Um caminhão havia despejado por ali restos de comida de um restaurante e muitas das quase 500 pessoas que compõem as famílias de catadores de Pinheiro faziam o mesmo. Até que, por cerca de dois minutos, Gabriel pode esquecer o imperativo da sobrevivência e viver sua infância.
“Parece que tudo aconteceu em câmera lenta. Vi quando ele achou a sacola, abriu um sorriso e começou a puxar a árvore de dentro. Aí, automaticamente, comecei a fotografar”, narra João Paulo Guimarães, natural de Belém (PA), que registrava o abandono e miséria daquela comunidade. “Mãe, olha só, achei essa árvore! Ela está torta, mas a gente pode desentortar, consertar as luzes e colocar na sala no dia do Natal”, ele ouviu o menino dizer.
Muito envergonhado até aquele momento, Gabriel aceitou a oferta do fotógrafo de guardar sua árvore-tesouro enquanto ele voltava à tarefa de revirar os detritos em busca do que levar para casa —feita de barro, onde vive com a mãe e um irmão de três anos. Em seus 13 anos de fotojornalismo, Guimarães registrou diversas imagens que definem momentos do país, desde as onças mortas nos incêndios do Pantanal, profissionais da saúde desolados diante da morte de pacientes por covid-19 ou jovens lideranças indígenas marchando em Brasília por seus direitos. Ele sabe, no entanto, que nenhuma delas é tão representativa quanto a do garoto negro e sua árvore retorcida no meio do lixão de onde tira seu sustento. No Brasil da miséria, a dignidade do menino preto e pobre que, sem sequer ter consciência disso, reivindica seu direito de sonhar com o Natal. Quase imediatamente, a imagem publicada pelo fotógrafo foi reproduzida à exaustão em noticiários e redes sociais.
A foto de Gabriel é a mais recente de uma sequência de imagens que compõem o álbum do Brasil degradado, famélico, cada vez mais desigual, onde além dos 20 milhões que já passam fome hoje, 24,5 milhões não sabem se vão comer amanhã —de acordo com os mesmos trágicos números do relatório da Rede Penssan. Não bastaram os ossos expostos da menina yanomami de oito anos e 12 quilos, um esqueleto retrato do descaso do país com os povos originários. Não bastou o vídeo de pessoas atracando-se por sobras de verduras, frutas e carnes num caminhão de lixo em Fortaleza (CE). O Brasil onde cidadãos madrugam na fila da doação de ossos com retalhos de carne para não morrer de fome —e onde frigoríficos passaram a vender “ossos de primeira e de segunda” nas periferias das grandes cidades— parece estar fadado a repetir cenas de seu mercado da miséria.
Com uma inflação de 10,7%, depois de aumentos mensais nos preços de mercadorias no último ano, uma “recessão técnica”, e cerca de 14 milhões de desempregados, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país amarga mais do que uma crise econômica. “É uma crise moral”, como bem diz João Paulo Guimarães, que lembra dos preços inflacionados e da crise alimentar dos anos oitenta, marcados pela “fila do leite” ou “fila da carne”. “Hoje temos a fila do osso. Como um restaurante diz que não vai te dar o resto de comida e sim vender? Como um supermercado se atreve a cobrar as pessoas por pedaços de ossos?”, questiona, indignado, ele que voltou para casa “destruído psicologicamente” depois de retratar Gabriel.
O Lixão da Piçarreira, onde o menino e sua família catam os restos de sua sobrevivência, existe há aproximadamente 30 anos, segundo o defensor público Fernando Eurico Arruda, que trabalha há seis meses com a comunidade local. A Lei nº 12.305, que prevê, desde 2 de agosto de 2010, que todos os rejeitos do país tenham uma disposição final ambientalmente adequada não foi eficaz para extinguir os locais que hoje servem como os “mercados” daqueles que estão abaixo da linha da pobreza. “Só em Pinheiro são quase 200 famílias que dependem desses dejetos. Abaixo deles não existe mais miséria, estão no último degrau na degradação humana. É uma realidade humilhante, que gera perplexidade mesmo para quem já está acostumado a lidar com mazelas sociais”, comenta Arruda.
Também ele faz referência à crise moral que faz com que fotos trágicas se repitam em um looping de choque e consternação da opinião pública. “Tem coisas que vão se banalizando em nossa sociedade. As pessoas se chocam, mas, passados alguns dias, tudo volta ao normal. Nossa preocupação é o que vai acontecer depois da viralização”, diz ele, que realizou uma audiência pública para criar a Associação de Catadores de Pinheiro, com o objetivo de organizar o trabalho e a busca por políticas públicas para a comunidade que sobrevive da reciclagem.
Depois de comporem juntos —e involuntariamente— o triste cartão natalino do Brasil para o mundo, o menino e o fotógrafo voltaram a se encontrar. Graças às doações de diferentes pessoas que se comoveram com sua foto, Gabriel recebeu de João Paulo uma árvore de Natal grande, nova e inteiramente decorada, além de nove cestas básicas. Até esta quinta-feira, uma campanha de doação online já havia arrecadado mais de 38.000 reais para que sua mãe termine de construir uma casa de alvenaria para a família. Ambos sabem que a cena que compartilharam é irrepetível. Oxalá fossem irrepetíveis os demais retratos de um país tão desigual.