Ter convicção do que se diz e faz é condição sine qua non para o início de uma boa, promissora, amigável e saudável conversa. Tudo que foge a esse pressuposto soa como barata-voa, mentira ou, na melhor das avaliações, uma pena que alguém, por interesse particular ou para defender o ídolo, a transforma em uma galinha. É verdadeira a afirmação de que a manifestação bolsonarista do domingo (25) foi uma das maiores já vistas pelos transeuntes da Avenida Paulista. Todavia, não pode ser considerada a maior, tampouco um protesto capaz de levar Jair Messias de volta à crista da onda, emparedar Alexandre de Moraes ou avermelhar Luiz Inácio de medo. Calma! Povos e povas ligados ao mito, não se esqueçam de que foi a soberba que lhes tirou a reeleição. Não adianta chorar o leite derramado. O jogo já foi jogado. Se houver, esperem a revanche. Por enquanto, queiram ou não, o Brasil tem um presidente, um juiz e equipe que corresponde às aspirações da população.
Quanto aos números, como no Brasil é cada qual com seu cada qual, naturalmente que a mídia simpática à causa inflou o número de participantes. De acordo com técnicos do Instituto de Estudos Avançados da USP, esticando daqui e dali, havia 185 mil pessoas na Paulista. Não à toa, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, sob o comando de Tarcísio de Freitas, estimou o público presente em 600 mil. Em que pese a necessidade de a sardinha ser puxada para o espeto do mito, devagar com andor que o santo é de barro, mas não é besta. Entre a turma que brotou da prancheta dos policiais paulistanos, percebi pessoas que não tinha a menor ideia do que estavam fazendo sob o sol escaldante da Paulicéia.
Por dever de ofício, acompanhei boa parte do evento. Vi, por exemplo, centenas de homens e mulheres enroscados na bandeira de Israel, sob o argumento de que, como cristãos, estavam ali para defender o povo israelense da insanidade de Lula. É um direito cada um se enrolar simbolicamente com o que bem entender. Todavia, a exigência mínima é que tenham algum conhecimento do que dizem. Como a maioria do grupo, os “patriotas” (ou apenas simpatizantes de uma causa que desconhecem) sequer pesquisaram para saber que em Israel não há cristãos. O povo que odeia a tirania de Benjamin Netanyahu é judeu e tem orgulho de ser conhecido dessa forma. Ou seja, firmar convicções sobre premissas absolutamente falsas não é de bom alvitre.
Uma coisa é se manifestar contra esse ou aquele que a turma do Bozo associa ao cão chupando manga. Outra coisa é afirmar que esse de quem os bolsonaristas não gostam é carta fora do baralho. Vocês sabem que não é. Da mesma forma, têm certeza de que a recíproca é verdadeira, isto é, que o Satanás de rabo é o extrema-direita do time perdedor. Talvez aquele cujo reinado incomode tanto ainda não seja o rei ou o ás de ouro, copa, paus ou espada. No entanto, hoje ele está consolidado como o coringa que limpa qualquer jogo e bem distante do duque sem naipe, cuja função, além de sujar canastras, é, no máximo, se manter no lugar dele.
Como diria meu querido amigo Valdemiro, Simius galhorum habitatum est, que no jargão etílico-sexual quer dizer cada macaco no seu galho. Nada mais do que isso. O sinônimo dessa latinizada e paulinizada frase é ainda mais simples: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. No linguajar mais popular, é o mesmo que pedir para ninguém confundir alhos com bugalhos, sonhos de tirania com democracia da minha tia e, atarantadamente, comparar a grande obra do Mestre Picasso com o tamanho do sarrafo do mestre de obras. Foi uma grande manifestação, mas é demais dizer que a multidão sinalizou para Alexandre de Moraes que Jair é inegociável, imprestável, imbrochável e imprendável. Se houve realmente um recado, ele foi tão rouco que seus destinatários nem perceberam.
Mais uma vez recomendo calma ao povo do ódio. Todo cidadão tem o direito de ter uma ideologia, uma escola de samba, uma igreja, um partido, um clube de futebol ou um político de estimação para chamar de seu. Faz parte do ambiente democrático. Para isso, o bom senso exige um mínimo de coerência e o máximo de convicção. Não dá para amar a dois senhores, muito menos idolatrar alguém pelo que ouviu dizer dele nas redes sociais ou nas mesas mais elitizadas. Não vejo a manifestação como o último sopro de Jair Bolsonaro, mas tenho certeza de que ela ou outras que vierem não o levarão de volta ao Olimpo. Na verdade, a Inês é morta. Embora não percebam, esmurrar mesas, articular golpes e levar facadas em vão vêm servindo muito mais para canonizar, imortalizar e santificar quem se quer expurgar e muito menos para consagrar ídolos pasteurizados, daqueles que, levados ao fogo, cozinham mais rápido do que miojo. Didaticamente, os cães ladram e a caravana passa. Que seja sempre assim.
P/s – A foto que ilustra o texto é de mural colocado domingo cedo na Paulista. Vários bolsominions tiraram fotos e postaram nas redes sociais. Não tinham ideia de que o escrito em hebraico רצח עם significa “genocida”.