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Elysia

‘Café Literário’ de Notibras chega com conto de assombração

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Autor/Imagem:
Franciele Casado - Foto Produção Francisco Filipino

Em uma época não tão distante, eu vivia de forma pacata em uma pequena cidade do interior. Posso dizer, sem sombra de dúvida, que, apesar das condições precárias, eu era muito feliz. Durante toda a minha vida, nunca imaginei que um dia estaria em um lugar como este. Você pode pensar que talvez eu estejam exagerando, mas não se engane… Quando dizemos que as coisas não podem piorar, acredite, elas podem. Antes de contar onde me encontro atualmente, preciso contar como cheguei aqui.

Inicialmente, preciso dizer que “o meu nome é Elysia e eu estou aqui”. Preciso repetir isso pelo menos uma vez ao dia para manter minha sanidade. Enfim, vamos ao que interessa. Eu morava em uma simples casa de madeira no meio do campo, próximo à cidade de Rosas do Oeste, que, como o próprio nome sugere, era conhecida por suas rosas. Apesar de eu já ter 28 anos, ainda morava com meu pai e meus quatro irmãos mais novos. Mamãe já havia falecido na primavera passada e eu assumi sozinha todas as tarefas domésticas.

Por ser a mais velha, eu era o braço forte da casa e deveria cuidar de tudo, enquanto os homens faziam o “verdadeiro trabalho” no roseiral do Sr. Osgian. Papai nunca me deixava esquecer que preferia que eu tivesse nascido homem, mas o que eu podia fazer? Não é algo que podemos escolher quando estamos no ventre de nossas mães. Mas como eu poderia explicar isso a ele? Um velho rabugento e ignorante nunca entenderia isso, ou preferia não entender. Afinal, em alguns casos, a ignorância é uma bênção ou, no pior dos casos, uma maldição.

Considerando a realidade que eu vivia, eu optava por ficar no meu canto, fazendo tudo o que papai e meus irmãos precisavam para que eu não fosse alvo de xingamentos ou agressões. Casa limpa, roupas limpas, refeições prontas no horário correto, além de cuidar do jardim e da horta. Mal sobrava tempo para ler meus livros surrados. Eu odiava e amava aquela vida pois era a única em que eu cabia.

Eu possuo um dom incomum, e graças a ignorância da minha família, ninguém havia percebido desde então. Esse dom, faz com que eu possa sentir o cheiro da morte. Mas como alguém poderia sentir isso?

Acredite, eu faço essa pergunta todos os dias e nunca descobri a resposta.

A primeira vez que senti o cheiro da morte foi no dia 1º de dezembro de 1963. Eu estava acompanhando a mamãe na entrega de uma cesta de legumes recém colhida da nossa horta para nossa vizinha Sra. Orlanza. Ela era uma velha ranzinza, já com seus 93 anos, e mal nos enxergava. Considerando as condições de sua velhice, era normal que ela morresse em breve, mas naquele momento eu senti um cheiro insuportável que ardia como pimenta e comecei a tremer o corpo todo tentando afastar aquela sensação.

Mamãe me olhava feio e me beliscava dizendo para parar de brincadeira, a velha me olhou torto dizendo que eu estava com o diabo no corpo, mas eu não conseguia controlar a sensação. Mamãe começou a rezar todo tipo de reza que conhecia e após alguns minutos eu percebi uma voz silenciosa em minha mente: tu vai morrer, velha odiosa.

Mamãe pediu desculpas a ela e me deixou de castigo pelo resto da semana. Pelo menos, mamãe não contou para ninguém e eu pude passar todos os dias lendo sem interrupção. No sétimo dia do meu castigo, soubemos que a velha Orlanza havia partido dessa para melhor.

Para os demais anos que se seguiram, continuei farejando a morte de várias pessoas da nossa cidade, inclusive da minha mãe. Sempre que eu era avisada pelo meu nariz, as pessoas morriam em menos de sete dias. Para os mais sortudos a morte aparecia no sétimo dia e para os mais azarados no primeiro dia e assim por diante.

Mas o que eu não imaginava era que eu poderia farejar a minha própria morte.

Era sexta feira 13, eu estava na cozinha preparando um café e senti um vento farfalhante entrar pela janela fazendo com que as rosas no peitoril, murchassem de imediato. Eu percebi então que não era um vento normal, eu estava recebendo um aviso de algo ou alguém.

Assim que me recompus, notei que havia pessoas me chamando no portão. Quando cheguei até lá, observei que eram quatro adultos, sendo uma mulher grávida, três homens e uma criança. Demorei alguns minutos para notar a criança. Ela tinha uma aura assustadora e sombria. Todos os cabelos da minha nuca estavam arrepiados. Me recompus novamente e questionei o que eles queriam. A mulher se apresentou como Elante e os demais eram Ozadias, Orlan e Amadeus. A menina pavorosa se chamava Elanere.

Ela me explicou que eles haviam chegado recentemente na cidade e estavam procurando um local para comprar legumes frescos e que a minha horta havia sido indicada. Sinalizei para que me seguissem em direção a horta que ficava no fundo da casa. Informei os valores e enchi uma cesta com os pedidos.

Antes de ir embora, Elante me pediu para usar o banheiro e eu indiquei para que ela me seguisse, a menina veio junto e os homens foram esperar no portão.

Enquanto ela estava no banheiro, Elanere me seguiu até a cozinha e disse: “Você vai morrer e seu dom será passado a mim”. Quando a olhei nos olhos e pedi que repetisse, ela seguiu em direção às rosas murchas e as tocou. Naquele momento senti o cheiro da morte novamente, impregnado naquela garota. Perguntei quantos anos ela tinha, e ela disse “tenho dez”. Minha boca abriu em um assombro pois era mesma idade que eu tinha quando farejei a morte da Sra. Orlanza.

Quando eu pensei em fazer novas perguntas, Elante havia saído do banheiro e chamava a garota para ir embora. Ao ouvir seu nome, Elanere me deu um risinho demoníaco e saiu correndo da cozinha. Apenas gritei adeus em resposta e fiquei sentada imaginando o que viria depois.

Para aproveitar os meus últimos dias de vida, decidi reler meu livro favorito e comer tudo o que eu pudesse. Era a primeira vez que eu ia me colocar em primeiro lugar. Passei o dia todo lendo, comendo bolo de milho e bebendo chá de hortelã. Não cumpri minhas obrigações e esqueci de preparar o jantar.

Papai e meus irmãos chegaram do trabalho no final da tarde e ao notarem que não havia nada pronto para comerem, me espancaram com socos e chutes, porém, neste dia não pararam e meu destino foi selado conforme a garota havia proferido.

Por eu ter vivido uma vida relativamente normal sem ter feito nenhuma diferença no mundo, eu vim parar no limbo, um lugar morno com telefones vermelhos que podemos usar para ligar para quem gostamos. Agora se a pessoa do outro lado da linha, consegue ouvir a minha voz, eu não sei confirmar. A velha Orlanza disse que nunca conseguiu falar com ninguém pois não tinha nenhum número decorado. E, sim, ela me confirmou que eu roubei o dom dela, mas não se importava já que havia roubado de outra mulher.

Nunca soubemos de fato como esse dom ou maldição funciona, mas espero que Elanere possa utilizá-lo melhor do que eu.

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