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Capitalismo selvagem faz da terra mera bandeira da especulação

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A geografia é a ciência que estuda o espaço. Entretanto, tanto a Geografia Humana como a Física sempre foram, até poucas décadas atrás, ciências puramente descritivas, o que as deixava com certo “complexo de inferioridade” por não conseguirem oferecer explicações.

Limitando-nos ao espaço urbano, isso acabou quando apareceu a ideia de que esse espaço não era produto da natureza (como rios, montanhas, clima etc.), mas produto do trabalho humano.

David Harvey, notável geógrafo britânico, marcou essa transição na passagem do livro Explanation in Geography (Edward Arnold, 1969; chamo a atenção para a palavra “explanation”) para Social Justice and the city (Edward Arnold, 1973).

Essa passagem marca também a adesão de Harvey ao materialismo histórico e ao marxismo. Harvey é dos mais notáveis marxistas contemporâneos. Essa colocação foi absolutamente revolucionária, pois permitiu a inserção da Geografia no campo do materialismo histórico e em todo o seu rico aparato teórico.

Na verdade, o que é produto do trabalho social humano não é a terra-matéria, mas a localização. Em outras oportunidades cunhamos a expressão “terra localização” para designar os diversos pontos de um território urbano. Isso porque os produtos do trabalho são algo material e a “localização” não é.

Por isso, seguindo Marx, que criou as expressões “terre matière” e “terre capital”, que ele escreveu originalmente em francês, cunhamos a expressão “terra localização”. Quando Marx falou em terra (ou em renda da terra) nunca falou em localização.

Se Marx tivesse estudado um pouco mais a terra urbana, o que ele não fez, certamente teria enfrentado a questão da localização. Para se entender bem o conceito de localização urbana, basta escolher qualquer ponto de um território urbano: por exemplo, a esquina das avenidas São João e Ipiranga, na cidade de São Paulo.

Através desse cruzamento, o ponto fica perfeitamente definido. Entretanto, é possível determinar esse mesmo ponto também pelo cruzamento do paralelo X com o meridiano Y. A diferença entre as duas maneiras de determinação é fundamental. Pela primeira maneira, a localização muda; pela segunda, não.

Há 200 anos, as duas avenidas não existiam, enquanto o paralelo X e o meridiano Y sim. Mais ainda: estes existirão sempre, já as avenidas, pode ser que sim, pode ser que não. A localização da praia de Copacabana era uma em 1.810, outra em 1.910 e outra ainda em 2010.

Essa localização mudou radicalmente como acessibilidade, mudou fisicamente, mudou como prestígio social, mudou com o preço da terra. Mas como cruzamento de um paralelo com um meridiano não houve mudança alguma. Uma localização foi produto material do trabalho humano, a outra não.

Vejamos outras especificidades de localização:

  • As localizações são únicas. Não existem duas iguais, é impossível existir. Não existem duas localizações como a esquina das avenidas São João e Ipiranga.

  • Embora produzidas pelo trabalho humano elas são irreproduzíveis pelo trabalho humano (como as obras-primas, dizia Marx).

As localizações não são como televisores, sapatos, cadeiras, automóveis ou aviões, que podem ser produzidos aos milhares, um igualzinho ao outro, e que podem ser equitativamente distribuídos por entre todos os que participaram de sua produção, mesmo que sejam centenas ou milhares.

Se não existem duas localizações iguais e se o trabalho humano não pode reproduzi-las, pergunta-se: como é possível distribuí-las equitativamente dentre os que participaram de sua produção? Essa distribuição equitativa é impossível.

Essa particularidade esclarece algumas questões importantes. Por exemplo, ela já explica porque há uma luta tão ferrenha dentre os produtores, quanto se trata de receber uma parcela do produto. Ou seja, quando se trata de distribuir a terra como produto do trabalho.

Essa luta é clara no caso do espaço urbano. Ela se manifesta com clareza no mercado imobiliário, nos preços da terra e na disputa que há entre os bons e maus “pontos”, seja para estabelecimentos de comércio, de serviços, escritórios, edifícios de apartamentos ou moradias unifamiliares.

Como distribuir equitativamente esse produto único do trabalho social humano, por entre os que participaram de sua produção?

Diante desse dilema, todas as sociedades humanas desenvolveram regras e mecanismos para distribuir esse produto absolutamente do trabalho. A proximidade do poder – seja do rei, seja dos deuses – foi uma dessas regras.

Os mais ricos e poderosos ficam próximos do(s) deus(es) ou do rei (do poder). Os mais pobres ficam longe, mas não muito, não demais. Versalhes achou que podia ficar longe demais e rompeu com essa regra. Deu no que deu.

O capitalismo transformou a terra localização em mercadoria e o mecanismo do mercado passou a ser a regra que preside a sua distribuição. Talvez muitos acreditem que essa não é uma regra democrática. Pode-se achar que o mecanismo de mercado é um mecanismo de dominação social. Quem se habilita a propor uma regra democrática?

Flávio Villaça

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