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Caminhando e cantando, fomos levando a canção da vida

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José Escarlate

Eu levava a vida como o diabo gosta. Praia todos os dias, futebol na areia à tarde e, à noite, encontro com os amigos, jogando conversa fora até alta madrugada. Os pontos favoritos eram a esquina da Constante Ramos com a Atlântica, antigo Posto 4 e meio, o antigo Mercadinho Azul, na avenida Copacabana, em frente à Dias da Rocha, e o Bar Kicê, na esquina da Miguel Lemos.

No Kicê pintavam o João Saldanha, o Ronaldo Xavier de Lima, os irmãos Geraldo “Galinha” – porque ciscava muito -, Gilberto Moniz Viana, o “Sôgil” e o crítico de cinema, Moniz Viana. Às vezes pintava por lá o Hélio “Papinha”, o Hélio Souto, muito parecido com o ator americano Cornell Wilde, e que mais tarde trabalhou no cinema e nas novelas. “Papinha” mais tarde casou-se com uma milionária, Maria Helena Morganti, cujo pai foi o maior produtor de café do país.

A noitada inocente, em meio a “barbadas” imperdíveis, terminava no bar Bonfim, em frente à praça Sezerdelo Corrêa, junto à antiga e belíssima Igreja de Nossa Senhora de Copacabana, derrubada para dar lugar a um supermercado. Por conta desse sacrilégio ninguém foi preso, apesar de a igreja estar a menos de 100 metros do distrito policial. Às vezes, a caminhada se estendia até o Beco da Fome, na avenida Prado Júnior, onde curtíamos o caldo verde da negra Lindaura.

Na rua Constante Ramos, o grande “must” da época era o cinema Rian, que veio abaixo para a construção de um hotel lusitano. Na saída dos fundos do cinema, na rua Domingos Ferreira, fazíamos a primeira parada. Era a boate “Tudo Azul”. Alí tocava o meu amigo pianista Paulo Burgos, um artista de grande sensibilidade e alta qualidade. O cantor, iniciante, era o Geraldo Vandré, quando ainda não era Vandré, procurando crescer na vida. Musicalmente. Eles eram amigos desde quando a boate Tudo Azul funcionava em cima do Hotel Vogue, na avenida Princesa Isabel.

Paulo Burgos foi um amigo querido. O Geraldo, um ano mais novo, estudava Direito e era cantor e compositor. Eu, apenas o peru de fora para dar palpite.

Geraldo era da Paraíba, e veio para se apresentar no Programa César de Alencar. Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, seu nome verdadeiro, apresentou-se imitando seus ídolos, Carlos Galhardo e Carlos José, o seresteiro. Depois, conseguiu defender, num festival da TV Rio, a música “Menina”, do Carlinhos Lyra, que era garoto como nós. Bancado pela mãe, gravou um disco imitando Orlando Silva e Francisco Alves. Percorria estações de rádio e pagava cafezinho para discotecários. Naquele tempo, era só cafezinho.

Conheceu o Valdemar Henrique, que comandava um programa na Radio Roquete Pinto e a coisa melhorou. Fez amizade com o Ed Lincoln, com o Luisinho Eça e com o Baden Powell. Precisava arranjar um nome artístico. Valdemar, que era numerólogo, matou a charada. Optou pelo prenome Geraldo, e abreviou o segundo prenome do pai, que se chamava José Vandregísilo Dias.

Cursando o Clássico, conheceu o João Gilberto. A partir daí, a fila andou.  Depois de um monte de sucessos, Geraldo Vandré participou, em 1968, do Festival Internacional da Rede Globo, com “Caminhando” ou “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, no Maracanazinho. Ficou em segundo lugar, perdendo para “Sabiá”, de Tom Jobim. Mas foi consagrado pelo público, que só cantava a sua música.

“Caminhando” tornou-se um hino de protesto contra a ditadura instalada no país. O sucesso foi tão grande que após lançado, o disco foi proibido. Perseguido pelos órgãos de segurança, Geraldo se auto-exilou no Chile. Com a volta para Brasília, quando me entreguei totalmente ao jornalismo, perdi contato com o Geraldo.

Paulinho Burgos, também veio para Brasília, onde reatamos a velha amizade. Casou-se e reconstruiu a sua vida artística, montando inclusive uma gravadora na Zona Franca de Manaus. Era feliz em Brasília e permaneceu aqui até ser vitimado por um infarto fulminante, em 2002. Sua música, com um repertório da melhor qualidade, sua sensibilidade e seu brilho como pianista, além de um amigo da melhor linhagem, deixaram saudades. Uma saudade ao ouvir os discos que ganhei dele. A relembrança através da música é eterna.

PV

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