Fernando Henrique Cardoso
A semana que ontem terminou foi pródiga em debates eleitorais. O mais significativo em termos globais foi o duelo Hillary Clinton versus Donald Trump. Entre nós, a multiplicidade de candidatos a prefeito é tanta e a fragmentação do eleitorado é tão grande que fica difícil até mesmo acompanhar o que dizem.
Vendo o debate americano, ficou claro que Trump quer ser o candidato do “contra tudo isso que está aí”, muito especialmente contra a globalização, e dos que não gostam dos imigrantes. Com jeito, Hillary mostrou, a quem tem olhos para ver, que a intolerância racial se junta ao blend de arrogância e beligerância do candidato republicano. Experiente e bem preparada, Hillary exibiu racionalmente suas qualidades como eventual “comandante em chefe” das Forças Armadas e chefe de Estado e de governo. Mostrou-se também mais comprometida com os valores da igualdade democrática. Uma estadista.
Com o olhar de alguém de fora e com formação universitária, a vitória de Hillary pareceria assegurada. Como político, contudo, sinto certa angústia: o marquetismo nas sociedades de massas, interligadas pelas TVs e pela mídia social, torna ainda mais imprevisível o comportamento do eleitor.
Esta é a esfinge da política contemporânea. Aos mais velhos dá saudades do tempo em que os partidos correspondiam no geral aos “interesses de classe” ou pelos menos a grupos sociais mais bem definidos e a política era ou parecia ser a disputa entre esses interesses pela sua representação nos órgãos eletivos do Estado. Hoje o eleitorado é mais fragmentado porque a sociedade é também mais fragmentada e os indivíduos se definem por adesões a valores, a identidades culturais, que se sobrepõem às identidades de classe, tornando-as menos nítidas.
No caso americano, pelo menos, ainda se podem distinguir visões claramente diferentes: do lado republicano, uma visão abertamente isolacionista e hostil aos imigrantes e à globalização; do lado democrata, uma visão cultural e racialmente mais aberta, liberal-democrática, e mais realista, no reconhecimento da globalização das relações produtivas.
Entre nós, é mais difícil perceber os “dois campos”, ainda mais numa eleição de âmbito local. Aqui é maior a desconexão entre os partidos e a sociedade. Nem esta se vê representada naqueles, seja em seus interesses econômicos, seja em seus valores e identidades culturais, nem os partidos são capazes de apresentar visões que, agregando interesses e valores, em distintos campos culturais e políticos, permitam à sociedade perceber-se como mais do que um conjunto de indivíduos ou de grupos identitários autorreferidos.
Embora em São Paulo e no Brasil o PSDB deva sair fortalecido, o quadro das eleições municipais, projetado para 2018, preocupa. Desde as eleições de 1994 até 2014, o PSDB e o PT pelo menos organizavam dois campos distintos na disputa pela Presidência da República, o que apontava um certo rumo para o mandato presidencial. O PMDB, por sua vez, atuava como elemento estabilizador para a aprovação das medidas governamentais no Congresso Nacional.
É natural que em 2018 as questões nacionais estejam em pauta. Para dar um rumo congruente ao País, no entanto, será necessário que um ou mais candidatos se ergam acima da fragmentação partidária e não se deixem guiar pela “ciência” do marketing eleitoral. Torço para que se apresente quem proclame em alto e bom som que zelar pelo equilíbrio fiscal é obrigação de qualquer governante responsável, pois o descontrole das contas públicas leva à inflação, que rouba a renda dos mais pobres; que sem investimento e crescimento econômico não há sustentabilidade das políticas de inclusão social, mas também que sem estas o “mercado” concentra a renda e frustra a aspiração legítima por justiça social.
Um candidato que não se omita na discussão sobre os direitos reprodutivos das mulheres, inclusive o aborto, assim como sobre o uso de drogas (e as melhores políticas para reduzir o seu consumo), nem tema afirmar que todas as pessoas devem ter a liberdade de escolher sua orientação sexual sem prejuízo dos seus direitos como cidadãos iguais aos demais. Noutros termos, precisamos de uma candidatura presidencial que seja fiscalmente responsável, socialmente progressista e culturalmente liberal.
Ela deve ajudar a desenhar um novo campo político, que seja de centro-esquerda, mas plural e sem pretensões hegemônicas deste ou daquele partido. Não será um campo orientado por critérios de classe, mas voltado para os interesses das maiorias não ricas do País, contra os privilégios, e aberto às novas formas de participação e representação da sociedade.
Os partidos que não se derem conta de que a sociedade mudou e continuarem a girar no esplêndido isolamento do mundo congressual poderão continuar existindo, mas apenas como representação dos interesses daqueles que os controlam. Sem encontrar canais de representação nos partidos, os fios entre a sociedade e os Estados se tornarão ainda mais frágeis e esse vazio pode ser ocupado por formas de representação e organização de interesses altamente nocivas à democracia e à convivência civilizada. O espectro de uma sociedade incivil e de uma política de demagogos é um risco real.
A agenda de reformas que o atual governo apresentou é uma oportunidade para devolver grandeza à política. Aos partidos não cabe apenas votá-las no Congresso, mas convencer a sociedade das razões dos seus votos e, nesse debate, começar a desenhar visões sobre o Brasil para além de 2018. Fortalecido pelos bons resultados nas eleições municipais, o PSDB deve tomar a dianteira, sem exclusivismos, nessa tarefa, olhando para o futuro, sem esquecer de desmascarar o passado, com serenidade, mas com firmeza.