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Cansada da estupidez de Lúcio, Márcia muda com Elisângela para Recife

Elisângela, costureira das boas, costumava fazer viagens mensais à cidade vizinha para comprar tecidos e linhas. Vez ou outra, surpreendia a clientela com modelitos copiados de revistas adquiridas na capital. Coisas de atrizes, que chegavam ao vilarejo através das telenovelas.

— Tem como fazer um vestido que nem o da Glória Menezes?

— Tem.

— Pois quero um igual ao da Tônia Carrero.

— Anotado.

— Pode ser vermelho?

— Pode.

— Quero o meu igualzinho, mas prefiro dourado.

— Dourado?

— Dourado!

— Vou precisar encomendar.

Entre idas e vindas, a costureira conheceu Márcia, mulher de seus 30 anos, casada com Lúcio, homem bruto, que tinha hábito de cuspir assim que botava os pés na calçada. Quanto ao trato com a esposa, era situação para marcar território. Coisa de macho, costumava dizer.

Márcia, ocupada com os afazeres domésticos, não tinha tempo nem ânimo para protestar. As coisas eram mesmo assim, e não cabia a ela, mera mulher, contestá-las. Ademais, sentimento de culpa, não raro, a tomava, ainda mais diante de críticas do esposo.

— Márcia, quantas vezes já falei que esse arroz tá insosso?

— Desculpe, meu marido. Vou caprichar da próxima vez.

— Hum!

Outra questão que deixava Márcia aflita era a ausência de gravidez. Casada há quase cinco anos, estava rodeada de sobrinhos, o que redobrava sua angústia de não poder dar um filho ao esposo. As cunhadas e a sogra não perdoavam.

— Com essas ancas estreitas, não há criança que passe.

Foi por acaso ou, como dizem alguns, os acasos não existem, que os caminhos de Elisângela e Márcia se cruzaram. A costureira foi comprar panos, enquanto a outra procurava por botões para as camisas do esposo. As duas mulheres trocaram olhares e, não tardou, se cumprimentaram com breve sorriso.

— Costura?

— Um pouco.

— Tem mãos delicadas, dedos longos de pianista.

— Pianista?

— Sim. Mas pianistas também costumam ser boas costureiras.

— Creio que esteja enganada.

— Pode ser, mas seu corpo é perfeito para passarela.

— Passarela?

— Moda.

— Moda?

— Sim. Sou costureira e crio vários modelitos a partir dos vestidos de atrizes.

— Não sei nada sobre isso.

— Eis o meu cartão.

— Não sei se devo.

— O que você não deve?

— Pegar seu cartão.

— Por quê?

— Sou casada.

— E daí?

— Não costumo falar com desconhecidos.

— Elisângela.

— O quê?

— Me chamo Elisângela.

— Hum…

— Qual é a sua graça?

— Márcia.

— Prazer, Márcia.

Elisângela esticou a mão e cumprimentou Márcia. Em seguida, com quatro sacolas abarrotadas, a costureira saiu da loja. Não se viram pelos próximos dois meses, quando o destino fez com que aquelas mulheres se reencontrassem novamente.

Márcia, a princípio, tentou se esquivar, mas foi interceptada por Elisângela, que estranhou o hematoma arroxeado na face esquerda da conhecida. A princípio, fingiu não notar, ela sabia que coisas aconteciam.

— Pois não é que encontrei novamente a modelo dos meus sonhos!

— Que modelo que nada.

— Aposto que se esqueceu do meu nome.

— E como me esquecer da pessoa que me chamou de pianista? Elisângela.

— Hum, muito bem, dona Márcia.

Após trocarem olhares cúmplices, Márcia, envergonhada, tentou esconder o olho machucado. Inventou que caíra enquanto lavava o banheiro.

— Hum! Deve ter doído muito.

Antes que pudesse dizer algo, lágrimas desandaram a cair sobre a face de Márcia, que foi amparada por Elisângela.

— Ei, minha modelo, que tal tomarmos um sorvete para esfriar a cabeça?

Sem melhores alternativas, Elisângela consentiu com a proposta e, então, foram até a loja da esquina, onde se sentaram e fizeram os pedidos. Sorvete de pistache, como se aquele verde fosse capaz de trazer alguma esperança para Márcia.

Após desabafar com a quase estranha, Márcia se sentiu acolhida de alguma forma. Teve que retornar para sua residência, onde tinha ciência de que as agressões não cessariam. O jeito era andar na linha para tentar sobreviver àquele casamento infeliz.

Elisângela, mesmo quando não precisava ir à cidade vizinha para comprar apetrechos para seu ofício, fazia questão de se deslocar até lá, ainda mais porque, a partir de então, motivos mais urgentes a instigavam. Não foi da primeira, segunda ou quinta vez que aconteceu, mas foi lindo, como ela procurava se lembrar.

Os lábios se tocaram já na saída da cidade. As duas mulheres passaram o resto do dia como duas adolescentes se descobrindo, até que chegou a hora da despedida. Promessas de outros encontros, que se cumpriram periodicamente.

Quando a situação já beirava um ano, eis que a traição chegou aos ouvidos do Lúcio. Furioso, tratou de confrontar a esposa. Encontrou apenas um breve bilhete sobre a mesa da cozinha.

“Lúcio,
Não fiz o almoço, mas tem miojo na despensa.
Fui em busca da felicidade.
Márcia”

As duas mulheres, atualmente, vivem no Recife, onde montaram uma loja de roupas femininas. Elisângela vive criando novos modelos inspirados na companheira, quase todos vendidos a peso de ouro para a clientela endinheirada. Quando estão no aconchego do lar, a costureira aprecia o som do piano na sala, cujas teclas são carinhosamente estimuladas pelos longos e delicados dedos de Márcia. mas nele, a lei da sobrevivência continua implacável.

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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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